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domingo, 17 de julho de 2016

70 ANOS DA “GEOGRAFIA DA FOME”

por José Gonçalves do Nascimento
 

O drama da fome está presente em obras importantes da literatura brasileira, em especial aquela produzida por intelectuais nordestinos. Em algumas obras, o tema chegou a inspirar cenas que, por sua força e dramaticidade, tornar-se-iam verdadeiramente antológicas:


Em “O quinze”, de Raquel de Queiroz, o personagem Chico Bento, após esfolar uma cabra que encontra pelo caminho, e estando cego de fome, leva à boca os dedos sujos de sangue, comprazendo-se no “gosto amargo da vida”. No romance “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, a cachorra Baleia, há dias esfomeada, sonha com um mundo povoado por muitos e gordos preás. Em “A bagaceira”, de José Américo de Almeida, João Troculho, em diálogo com Lúcio, revela seu maior desejo: “comer até matar a vontade”.

Muito antes, Rodolfo Teófilo, ilustre humanista nascido na Bahia, mas radicado no Ceará, já havia tratado da temática, produzindo obras que se tornariam importantes peças de denúncia contra o terrível flagelo, caso do romance “A fome”, publicado em 1890.

Todavia, foi com Josué de Castro que a fome adquiriu estatuto científico, político e moral, não sendo encarada apenas como consequência de fatores climáticos e naturais, mas também, e sobretudo, como algo “provocado pelo homem contra outros homens”, a partir de ações políticas sistematicamente deliberadas.

Médico, geógrafo, cientista social, escritor, Josué de Castro é umas das figuras mais proeminentes do pensamento brasileiro. Pernambucano, nascido em 1908, dedicou a vida inteira ao estudo da fome e da nutrição, escrevendo sobre o tema obras de elevadíssimo valor científico e literário. Uma delas é “Geografia da fome”, publicada em 1946, ao fim da segunda guerra mundial, e tida por Alceu Amoroso Lima como “livro-chave da realidade brasileira”, comparável apenas ao “Os sertões”, de Euclides da Cunha.

O livro foi pioneiro no sentido de trazer à baile a problemática da fome e suas implicações políticas e sociais no momento em que o tema era considerado um tabu. O próprio autor classificará o assunto como algo “perigoso e delicado”, afirmando haver “uma verdadeira conspiração do silêncio em torno da fome”. “Será por simples obra do acaso – indagará ele – que o tema não tem atraído devidamente o interesse de espíritos especulativos e criadores do nosso tempo? Não cremos. Trata-se – continua – de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente.”

Ao lado disso, há que se acentuar também a existência de certo sentimento de grandeza e ufanismo que fez com que a elite política e intelectual do Brasil ignorasse por tanto tempo o problema da fome, optando por destacar apenas elementos que pudessem enaltecer o nome do país, ainda que de forma maquiada. “A ‘Geografia da fome’ – assevera Barbosa Lima Sobrinho – veio desmistificar a ideia de que não havia fome no Brasil.”

Fatores de ordem política, econômica, social e cultural, como a concentração da terra e da renda, o abandono do campo, a urbanização desenfreada, a centralização do poder, a chamada “política de fachada” – sem esquecer, obviamente, a indiferença com que o fato sempre foi tratado – são aqui apontados como as principais causas do problema da fome ou da deficiência alimentar.

O livro divide o território brasileiro em cinco diferentes áreas alimentares, possuindo cada uma delas características específicas e níveis diversos de nutrição e subnutrição, tudo isso condicionado por particularidades históricas, geográficas, econômicas, sociais e culturais. São elas: 1) Área Amazônica; 2) Nordeste Açucareiro ou Zona da Mata Nordestina; 3) Sertão Nordestino: 4) Centro Oeste e 5) Extremo Sul.

Das cinco regiões que formam o mapa alimentar brasileiro, três são consideradas “áreas de fome”: a Amazônica, a da Zona da Mata e a do Sertão Nordestino. Segundo o estudo, estas são áreas onde pelo menos metade da população apresenta “nítidas manifestações de carência nutricional”. É onde, segundo o autor, revela-se a "chamada fome oculta, na qual, pela falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias”. Conforme vem definido, fome oculta é aquela caracterizada pela deficiência de ferro, cálcio, sódio e de vitaminas do complexo B, dentre outros. É a fome tipicamente de “fabricação humana”, nas palavras do próprio autor.

Josué de Castro morreu nos anos setenta em Paris, onde se encontrava exilado por força da ditadura militar, instalada em abril de 64. Morreu de infarto após tentar sem sucesso voltar ao Brasil e retomar a luta contra o terrível flagelo, que mais e mais se acentuava. Mas sua obra, em especial “Geografia da fome”, ainda haveria de render muitos e bons frutos, inspirando ações de solidariedade, assim como políticas de governo. Alguns exemplos:

Nos anos oitenta, o então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara deflagra amplo movimento de combate à fome, objetivando erradicar o problema até o ano 2000. No início dos anos noventa, o sociólogo Herbert de Souza cria o movimento da “Ação da Cidadania”, que mobilizou parte expressiva da população e tirou da fome extrema muitos milhões de brasileiros. O movimento acabou sendo assumido pela agenda oficial, tornando-se política pública. Anos depois, seria implantado o programa federal “Fome zero” que deu origem ao atual “Bolsa família”, o qual tem enormemente contribuído para a melhoria da qualidade de vida de parcelas consideráveis do povo brasileiro, concorrendo assim para a redução da miséria que ainda assola nosso país.

Não obstante os avanços até aqui obtidos, as mazelas apontadas há setenta anos ainda não foram superadas. O problema do latifúndio e da concentração de renda, apontado como principal responsável pela fome, continua a persistir e de modo cada vez mais acentuado. De modo que o livro “Geografia da fome” chega aos nossos dias mais atual do que nunca.


Enviado pelo professor, escritor pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso.

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

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