Seguidores

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

FOTO E TEXTO DE RICARDO BELIELL.



Em 1898 nascia no sertão pernambucano o menino Virgolino (Lampeão), poucos meses após o massacre em Canudos de vinte e cinco mil seguidores do beato Antonio Conselheiro por tropas militares a mando do governo federal. O trauma do extermínio dos jagunços místicos se espalhou pelos rincões caboclos, castigados por sol e miséria, como uma danação. Os que não morreram de bala ou fome foram degolados e a aldeia de Belo Monte, uma espécie de fortaleza monástica construída num vale formado pelo rio Vasa Barris pelos jagunços numa localidade de nome Canudos, sucumbiu em chamas. Os sobreviventes, que conseguiram deixar o povoado antes da batalha final, passaram a viver em regiões como o inóspito Raso da Catharina e muitos de seus descendentes vivenciaram as crueldades da vida cangaceira nos anos seguintes.

Por entre os escombros da cidade santa o beato deixou escritos proféticos que alimentaram crenças populares e o temor a suas palavras por todos os cantos do grande sertão. "Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão; então o certão virará praia e a praia virará certão. Em 1896 hade haver guerra Nação com a mesma Nação, o sangue hade correr na terra. Em 1897 haverá muito pasto e pouco rastro e um só pastor e um só rebanho. Em 1898 haverá muitos chapéos e poucas cabeças. Em 1899 ficarão as aguas em sangue e o planeta hade apparecer no nascente com o raio do sol que o ramo se confrontará na terra e a terra em algum lugar se confrontará no céu... Hade chover uma grande chuva de estrellas e ahi será o fim do mundo. Em 1900 se apagarão as luzes. Deus disse no Evangelho: eu tenho um rebanho que anda fóra deste aprisco e é preciso que se reunam porque há um só pastor e um só rebanho!" Os sertões e sua gente findaram a guerra marcados drasticamente pelas premonições do Messias de Canudos. Cabeças cortadas, messianismo mesclado com sebastianismo, lutas fratricidas, secas, miséria e uma nova era que estaria por começar com o início do novo século. Talvez, até, o fim do mundo. 

Trecho do livro Memórias Sangradas, de Ricardo Beliel e Luciana Nabuco a ser lançado em breve.


Foto de Ricardo Beliel.

Lampeão, quando passava pelas terras do Caboclo, usava o menino Cadinho para transportar água do poço do Touro ao coito da cabroeira. "Quando eles saiam do rancho, me pagavam. Não ficaram devendo um só pote d´água". Ganhava cinco mil réis pelo serviço e circulava com tal intimidade no meio da guerrilha brancaleônica que certo dia recebeu um tiro de raspão no traseiro, cuspido do fuzil do cangaceiro Passarinho, que limpava seu armamento. Com as pernas tingidas pelo sangue que brotava de suas calças, nos confessa com a distância de oito décadas e um riso tímido, tremeu ao ver à sua frente Maria Bonita a arrancar-lhe a roupa. "Eu já tinha uma crina na base da mandioca e não ficava bem aquela condição. Trinquei as palavras e pedi: não faz uma coisa dessa comigo não..." "Ó xente" foi tudo que ouviu da cangaceira. Maria Bonita e Maria de Pancada arrancaram os panos gastos que cobriam seu corpo quase imberbe, trêmulo de vergonha, e o cobriram de cuidados e medicinas retiradas da resistente flora caatingueira. Por sua vez, Lampeão depositou as notas de duzentos e vinte mil réis sujas de sangue, que Cadinho tinha no bolso, para secar sobre uma pedra e cuidou do menino como se fosse seu filho. "As notas estavam meladas de sangue. Ele pegou uma pedrinha e botou em cima de uma varinha, prendendo o dinheiro, em cima de uma pedra. O dinheiro limpou, o sangue todinho. Uma nota de duzentos e outra de vinte. Quando ele me devolveu, disseram que eu tinha emprestado pra ele, mas eu não emprestei emprestando não." Cadinho passou oito dias arranchado com o cangaceiro Jurity, que assumiu seus cuidados a mando do chefe. Um comportamento comum ao mundo particular da cabroeira, também observado pelo fotógrafo Benjamin Abrahão em conversa com o major Optato Gueiros, da força pernambucana: "é invejável a harmonia, união e disciplina existentes naquele meio abjeto. Virgolino na intimidade de sua gente nada tem que se pareça com um bandido e nem todo pai trata os filhos com a finura e abnegação, tais como ele o faz a seu povo". Volta Seca, Beija-Flor, Deus-te-Guie e Roxinho, igual à Cadinho, ainda meninos entraram para o cangaço transportando água, lavando cavalos e fazendo pequenos serviços a mando dos chefes, até pegarem em armas.
(Depoimento de Seu Cadinho Machado para o livro Memórias Sangradas, projeto de Ricardo Beliel e Luciana Nabuco, a ser lançado em breve).


Texto e fotos de Ricardo Beliel.

As terras da família do frei faziam parte da fazenda Sueca, do coronel João Nunes, nos tempos do cangaço. O coronel, que começou na vida militar como aprendiz de corneteiro e chegou a ser comandante da Polícia Militar de Pernambuco, era, na época, um temido oficial da Força Pública, responsável por queimar as casas de parentes de Lampeão na vila de São Francisco e mandar fuzilar alguns revoltosos da Coluna Prestes presos em Floresta. Tamanha crueldade nutria em Lampeão um misto de ódio e admiração e em 1930 resolveu invadir sua fazenda. O sobrinho-neto do coronel, frei Nunes, nos conta: "Lampeão veio dos lados de Rio Branco (hoje Arcoverde) e passou por aqui. Quatro e meia da manhã, seu Toco foi buscar água, no clarear do dia, e o coronel ficou dormindo. Antigamente não tinha pia, o pessoal lavava o rosto na janela com um caneco. Quando ele abriu a janela, isso estava cheio da turma de Lampeão". (...)O coronel Nunes foi levado pela horda de cangaceiros, amarrado a um burro, viajando no coice da malta pelos sertões alagoanos ao longo de trinta dias. Longos dias e noites em que os dois desafetos ficaram frente a frente afirmando suas honras, coragens e paciências, à espera de um gesto capital. O coronel deveria ser sangrado para pagar a desonra ao capitão Virgolino. Palavras, olhares, gestos, ameaças e confidências selaram um pacto misterioso entre os dois e o coronel foi libertado em Sergipe. Com as roupas estropiadas, recebeu de seu resignado algoz trinta mil réis para voltar à fazenda. O sobrinho franciscano especula: "Saíram com o coronel amarrado e foram soltar lá do outro lado do rio. Ele todo machucado. Lampeão não matava homem de coragem. Dizem também que no meio do bando tinha um soldado, a polícia pagava mal, e esse soldado dirigiu a palavra, não matem o coronel não. O coronel é um homem de bem, eu conheço ele". Há quem diga que esse cangaceiro seria Corisco, soldado desertor do Exército em Aracaju.

Memórias Sangradas, de Ricardo Beliel e Luciana Nabuco, livro a ser lançado em breve.


Foto e texto de Ricardo Beliel

"A jovem sertaneja Maria Bonita, até mesmo depois de morta teve como único diagnóstico de sua degeneração social apenas o mal de amor, como atesta o laudo do exame de sua cabeça, assinado pelo médico-legista da polícia de Maceió, Dr. Lages Filho. "Não denunciam eles existência de quaisquer estigmas de degenerescença ou sinais atávicos. Na busca de sua constituição delinquencial muito mais importância teria o estudo psyenológico que permitiria pôr em relevo os caracteres fundamentais de sua personalidade. Em verdade uma conclusão definitiva e segura só poderia ser tirada da apreciação fisio-psíquica e biográfica da vítima, um meio capaz de revelar suas tendências criminosas mesmo se despertadas estas pela paixão ou pelo amor".

Trecho do livro Memórias Sangradas, de Ricardo Beliel e Luciana Nabuco, a ser publicado em breve.

 https://www.facebook.com/groups/545584095605711/

Clique no link acima para ver mais fotos e textos

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário