Em Piranhas, cidade na ribeira do São Francisco que ganhou fama ao expor nos
degraus da prefeitura as cabeças dos onze cangaceiros mortos em Angico, ainda é
possível, em dias calmos, longe do alvoroço das hordas de turistas de ocasião,
imaginar-se vivendo o cotidiano do povoado em tempos lampeônicos. Por essas
ruas passavam os almocreves e seus jumentos carregados de sacos de farinha e
peles de bode para serem vendidas na feira vizinha à estação do trem. Daqui
partia a Maria Fumaça, que serpenteando o rio chegava até Volta do Moxotó e
Jatobá levando gente e mercadorias. De longe chegavam as canoas de tolda e os
vapores que avivavam a praia com velas abertas e nuvens de fumaça negra
sopradas das chaminés de suas chaminés. É uma das poucas cidades nordestinas em
que se preservou um conjunto arquitetônico histórico e original e por isso se
transformou em ambiente cenográfico de filmes e novelas.
No casarão da família Rodrigues, o austero Celso Rodrigues, espalha velhas fotografias sobre uma grande mesa de madeira e me conta as aventuras de seus antepassados na velha Piranhas. Seu pai, Chiquinho Rodrigues, um importante comerciante e eminência política na cidade, resistiu à bala aos cangaceiros que a invadiram em 1936. "Os cangaceiros foram atacados de manhãzinha nas proximidades da fazenda Picos. O Gato, marido da cangaceira Ignacinha, que foi presa com a perna quebrada por um balaço, julgou que tinha ficado viúvo. Que ela tinha morrido. Então Gato juntou-se a Corisco. Fizeram um total de vinte e três cangaceiros e vieram atacar Piranhas, dizendo que vinham buscar a esposa do tenente Bezerra pra ficar no lugar da mulher dele. Fizeram logo uma jura lá na fazenda dizendo que todo mundo que pegassem que fosse de Piranhas iam matando. Mataram logo dois lenhadores nas imediações do riacho Pau de Arara. E de lá vieram, chegaram na Cachoeirinha atacaram a família. Mataram mais sete pessoas. Um vaqueiro, Emídio Anjo, por sinal era compadre de meu pai, veio avisar aqui. Meu pai estava na bodega com outros amigos. Aqui na entrada de Piranhas eles prenderam mais dois. Um cidadão que ia pro terreno e outro rapaz que tiraram de dentro de casa. Eles mataram esses dois homens porque na outra rua meu pai atirou neles lá do comércio e aí fechou o tiroteio. Meu pai tinha um rifle em casa e estava com um outro rapaz que trabalhava com ele, de nome Joãozinho Marcelino, que também estava com outro rifle. Devia ter uns dez rapazes armados aqui. Se supõe que a bala que matou o Gato tenha saído da casa do seu Correinha, mas meu pai cortou com mais de cem tiros aquela tropa e dizem que foi ele quem matou o cangaceiro. Outros falam na Cyra, mulher do Bezerra, que atirou da janela da casa, mas ela era muito delicada pra acertar um tiro". A empreitada fracassada comandada por Gato e Corisco não teve a participação de Lampeão, que quando soube do fiasco comentou irritado com a tropa ineficiente: "Serviço besta da peste".
Trecho do livro "Memórias Sangradas", de Ricardo Beliel e Luciana Nabuco, a ser lançado.
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