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sábado, 5 de maio de 2018

LEIAM, AMIGOS!


Por Antonio Corrêa Sobrinho

AMIGOS, leiam a deliciosa crônica do jornalista Guerra de Holanda, publicada no “Diário de Pernambuco” de 26 de março de 1948. Nela, a revelação de uma faceta do grande escritor brasileiro, o paraibano Zé Lins do Rego, e como este percebia os cangaceiros Antônio Silvino e Virgulino Lampião.



DETALHE PARA A COMPOSIÇÃO DE UM RETRATO

No almoço que o advogado Brito Alves ofereceu, em sua residência, ao romancista dos canaviais nordestinos, podemos perceber um pouco mais de perto, a alma profundamente mascarada de José Lins do Rego. Durante quase todo tempo da refeição, o autor de “Pedra Bonita” quedou silencioso, como se estivesse ali contrariado, ou como se sua glutonaria houvesse paralisado o sentimento da cordialidade. Creio mesmo, que do aperitivo ao charuto, tempo ocupado extensamente por um cardápio delicioso, só ouvimos do escritor das bagaceiras, resmungos de “obrigado” ou “basta’. As perfumadas iguarias seduziam com tanta violência os sentidos de Lins do Rego, que sua inteligência estava ausente.

Naquele momento, o homenageado era apenas um homem que comia e como se fosse também um condenado a ouvir a louvação de seus companheiros de mesa. O romancista que tanto e tão bem escreve, parecia estar de férias, ou ter ficado à porta da Livraria José Olímpio. Mas que engano! Como diria ele próprio – “que engano da peste!”

O advogado Brito Alves, incidentalmente, falou no nome do cangaceiro Antônio Silvino, o que foi o bastante para que a legenda desse nome despertasse no romancista a vontade de falar. O menino de engenho, que ele não deixa de ser nunca, animou-se de uma poderosa força de expressão; as recordações da infância juntaram-se nele e explodiram em anedotas e fatos sobre o cangaço e outros caracteres de sua terra.

Compreendemos, imediatamente, que é necessário, antes de tudo, um clima, uma geografia de umbuzeiros e mandacarus, um ambiente de chapéus de couro e de rifles, uma beira de rio para José Lins falar. Ele é um matuto e um matuto só sabe mesmo contar as cousas de sua terra, as histórias de amor que são quentes como o mormaço, as emboscadas dos covardes que se escondem no tronco da baraúna para matar pelas costas, homens da têmpera desse capitão Vitorino Carneiro da Cunha, Vitorioso Papa-Rabo.

Por isso, “Eurídice” foi uma espécie de filho natural, um romance que ficou isolado de sua obra. Rio de janeiro, quando tudo de José Lins do Rego só presta quando vem do sertão, da zona da mata, do banguê. E essa viagem que ele acaba de fazer ao Nordeste foi uma reconciliação com a terra e com o homem, um pedido de perdão a todos nós por ter escrito “Eurídice”, uma promessa de lealdade telúrica com o aparecimento, em breve, de um novo romance que conte o ciclo da cana-de-açúcar e que desfaça a má impressão que nos causou esse seu ato ilícito de amor com a vida carioca.

Isso porque, mais uma vez, na residência do advogado Brito Alves, tivemos a certeza de que o romancista de “Moleque Ricardo” é outro, quando se refere aos problemas de sua gente. Foi um prazer ouvi-lo recordar, principalmente os feitos dos bandidos que ele ama como elemento de composição de nossa árvore genealógica. Do bandido que para ele é mais um sertanejo de vergonha que se vinga em obediência a um código de honra, do que mesmo uma excrecência social. Do bandido de moral primitiva, por isso, violento, por isso, sincero, e muitas vezes, iluminado por um rasgo de estranha e comovedora nobreza.


Lampião, que era valente e não tinha a covardia na sua norma de conduta, respeitava por exemplo a vida e as propriedades dos vigários que encontrava pelo caminho. Respeito esse, aliás, que foi surpreendido também em outros bandoleiros, como Antônio Silvino. Tanto é assim que o criminalista Brito Alves nos citou o nome de um sacerdote muito conhecido no Recife, que mandava frequentemente “peras e uvas” para esse profissional do crime, durante o tempo em que esteve preso em nossa Casa de Detenção, porque Antônio Silvino, em suas “expedições punitivas”, respeitava, todas as vezes, os feudos do ilustre reverendo.


Hoje, porém, o cangaceiro está perdendo a sua fama, o seu heroísmo; está se tornando um elemento vulgar. E José Lins do Rego observa esse fato, com indisfarçável melancolia, para logo depois, imediatamente, explicá-lo com uma irreverência que provoca uma gargalhada de todos: “O sertão é, hoje, uma terra de filhos de Maria.”

É assim na intimidade esse escritor brilhante, essa imaginação sempre grávida, essa compleição nervosa que alterna bruscamente os sentimentos mais contraditórios do coração humano.

O jovem escritor Edson Nery me disse certo dia, que por mais de uma vez, encontrara o autor de “Doidinho”, perdido nas ruas do Rio, aflito, louco de aflição, mostrando o pulso aos amigos, pedindo-lhes que verificassem se ia morrer, em um abatimento que fazia pena. E no entanto, com qualquer palavra animadora de um amigo, ele se transformava de repente, passava desse estado de agonia nervosa, para o gosto de viver, de ser elogiado, o elogio que ele tanto ama, como já nos declarou para o “Diário de Pernambuco”: “eu gosto de elogios como os meninos gostam de caramelos.”

É assim na intimidade, o romancista José Lins do Rego: um menino de engenho que as seduções da metrópole não conseguiram matar.

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