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sábado, 25 de agosto de 2018

ALMOCREVARIA COMO DISFARCE


Por Sálvio Siqueira

Naquele tempo havia três tipos de cangaço exercido por bandoleiros: o “defensivo”, o “político” e o de banditismo propriamente dito, ou seja: “auto profissional”.

O Defensivo: “de ação esporádica na guarda de propriedades rurais, em virtude de ameaças de índios, disputa de terras e rixas de famílias”. Nesse caso, o cangaceiro era um ‘trabalhador’ dos latifundiários. Os ‘coronéis’ que mandavam e desmandavam em suas regiões na força dos arreios dos chicotes, punhais e balas das armas de fogo, determinando limites de propriedades, fazendo e acontecendo com o apoio dos administradores estaduais, eram os contratantes. Nesse tipo de cangaceirismo, após realizarem sua missão, a soldo dos fazendeiros, os cangaceiros se dissolviam e voltavam a trabalhar como vaqueiros ou lavradores. As desavenças ocorridas entre famílias, e as vinganças pessoais, mobilizavam constantemente os bandos armados. Parentes, agregados e moradores ligados ao chefe de uma família, pelo parentesco, compadrio ou reciprocidade de serviços compunham os grupos particulares que se agrupavam novamente toda vez que fossem ‘convocados’.

O Político: “expressão do poder dos grandes fazendeiros”. Já nesse caso, também tinham como patrão os ‘Manda-Chuva’ das regiões nas pessoas dos coronéis, só que, particularmente, exerciam seus poderes políticos em prol da própria causa onde muitas das vezes o poder era tomado pela força das armas. Logicamente todo fazendeiro ‘coronel’ que se presava tinha seu contingente de jagunços particulares, porém, para determinadas empreitadas recorriam a bandos de cangaceiros no intuito de fortalecerem suas fileiras. Nesse tipo, no cangaço político, resultando, muitas vezes, das rivalidades entre as oligarquias locais, esse se institucionalizou como instrumentos usados por essas oligarquias, empenhados na disputa para consolidar seu poder municipal, regional e mesmo estadual. Tanto o cangaço ‘defensivo’ quanto o ‘político’ existiram em uma mesma época, no entanto, não em só um lugar, mas em vários lugares abrangendo todo o território nacional.

Por último tivemos o “Banditismo”: em determinada época, alguns chefes de bandos cangaceiros cansaram-se de ‘trabalharem’ em prol dos grandes fazendeiros, coronéis e políticos, pois tinham que fazer o ‘trabalho’ pesado, sangrento, correndo todos os riscos e, do produto das ‘missões’, acabavam ficando com pouco. Com uma parte mínima daquilo que extorquiam e/ou roubavam. Então procuraram sua independência ‘profissional’. Se o coronel queria que fizessem algo, que pagassem o preço estipulado por eles. Esse ‘valor’ não foi exclusivamente em moeda corrente da época, muitas vezes foi usado a ‘moeda’ da troca de favores’. O trabalho era feito por garantias, fornecimento de mantimentos, armas, munição e segurança nas terras pertencentes aos coronéis. Para o cangaceiro independente, esse acordo feito com coronéis, políticos e até com autoridades foi de primordial importância, pois fez com o Fenômeno Social se prolongasse por séculos. Esse tipo de cangaceirismo foi exclusivo de uma só região, a Região Nordeste.

O cangaço criado e exercido por Virgolino Ferreira, o famoso Lampião, não se enquadra nos dois primeiros tipos respectivamente. Porém, os estudos nos mostram que ainda sem ser “Lampião”, Virgolino Ferreira já dava suas ‘voltas’ pelas quebradas do sertão exercendo a profissão armada. Na sequência tornara-se mais propenso para o terceiro com um acréscimo de vingativo a partir de uma determinada fase. O sociólogo Frederico Pernambucano de Mello, em sua obra literária “Guerreiros do Sol”, cita três tipos de cangaço, dentre os quais o ‘cangaço vingativo’. Muitos dos roceiros, trabalhadores rurais, que entraram nas fileiras do cangaço deveu-se há uma vingança feita ou mesmo para realiza-la. O interessante é que muitos dos soldados volantes, contratados ou efetivos, assim como os voluntários também entram nas fileiras das Forças Públicas, ou seja, começam a fazer parte do Fenômeno Social Cangaço, com a mesma determinação de praticarem uma vingança.

Pois bem, ao entrarem nos bando de bandoleiros, principalmente os chefes, com o passar do tempo à causa, ou motivo, da entrada vai ficando para trás. Vingar-se se torna coisa secundária ou mesmo é deixada de lado por completo, devido à nova vida trazer para o cangaceiro uma forma, maneira, de encher os bolsos de grana sem fazer calos nas mãos e, principalmente, não ter a obrigação de prestar contas a algum patrão e ser submisso ao mesmo criando em seu íntimo, em seu ego, uma ilusão de independência e liberdade total. Coisa que pegados nos cabos das enxadas, foices e machados arrumavam para sobreviverem com muita dificuldade, além de terem de dividir o pouco que produziam com os donos das fazendas e ainda viverem em total submissão.

Para entendermos as movimentações dos “Ferreira” antes de se tornarem definitivamente os cangaceiros ‘Esperança’, ‘Vassoura’ e ‘Lampião’, os irmãos Antônio, Livino e Virgolino Ferreira, respectivamente, que agiam com seus próprios nomes, devemos voltar no tempo. A partir de 1915, entrando pelos anos de 1916 e 1917, os irmãos ‘Ferreira’ almocrevavam por terras alagoanas, baianas, sergipanas e, logicamente, pernambucanas. Quando um almocreve levava mercadorias para determinada localidade, tinha que trazer de volta outro tipo de mercadorias, ou seja, não percorriam distâncias sem transportar suas cargas nos lombos dos animais. Então, entre os três anos citados acima, citando como exemplo, o chefe da tropa de almocreves dos “Ferreira” era Zé Dandão. Nesse período Delmiro Gouveia torna-se um grande exportador de peles de animais. Na cidade baiana de Monte Santo tinha um depósito de peles de criações, então, tendo ido levar mercadorias para duas cidades baianas, Uauá e Monte Santo, pegavam as peles no depósito de Monte Santo e traziam para a Vila da Pedra, hoje Delmiro Gouveia, AL. Daí poder dizer que Virgolino Ferreira trabalhou para Delmiro Gouveia, não como um de seus funcionários legais, mas, como um transportador de suas mercadorias. Isso até 1917 quando Delmiro Gouveia é assassinado. Então, notem que quando Lampião, em 1928, transfere-se para a Bahia, já conhecia boa parte do território escolhido para fixar seu ‘reinado’.

Antônio Matilde, tio dos irmãos ‘Ferreira’, no início do segundo meado de 1918 chega as Alagoas para fixar residência, pois em seu torrão natal não havia mais condições de continuar morando. Acompanhando Matilde estava um outro sobrinho, Luís Marinho, que havia casado com uma das irmãs de Virgolino chamada Virtuosa Ferreira. Esse dito cujo, leva um recado para José Ferreira, em Pernambuco, patriarca da família que o mesmo fosse para as Alagoas que havia terras e condições para ele trabalhar em paz. Ou seja, o genro levou o recado para o sogro.

Entre 1917 e 1922 no sertão alagoano agiu um bando de cangaceiros denominado “Os Porcino”. Esse sobrenome, se assim podemos dizer, era apelido, na verdade pertenciam as famílias Cavalcante e Fragoso. Nos anos em que agira, esse bando ficou famoso devido às atrocidades que praticavam com suas vítimas. Era um bando chefiado por um dos da família chamado ‘Antônio Porcino’ que havia matado um cidadão chamado Luís Pifeiro em setembro de 1918 no município de Água Branca, AL, durante uma procissão de uma imagem da “Santa Nossa Senhora”. Essa morte tinha sido sem motivos, tanto que um dos irmãos de Antônio, ‘Joaquim Porcino’, reclamou que não havia razão para ter matado o homem. Devido ter reclamado, Joaquim foi assassinado imediatamente por Antônio, seu irmão.

No momento dessa desgraça, citam alguns autores, que uma senhora abriu a porta da casa e saiu para calçada, curiosa, a fim de saber o que se passava, naquele momento é atingida por uma das balas saídas da arma de ‘Antônio Porcino’. O interessante é que os ‘Porcino’ também eram almocreves e assim, eram amigos dos ‘Ferreira’. A especialidade da almocrevia dos “Porcino” era transportar aguardente, cachaça, de Garanhuns em Pernambuco para várias cidades do sertão alagoano.

Quanto a ida dos “Ferreira” para o Estado das Alagoas há três versões. Alguns autores citam que essa ida foi em 1920. Já a autora do livro “O Canto da Acauã”, Marilourdes Ferraz, refere que foi em 1919. Ainda há a citação de que essa migração ocorreu em outubro de 1918. Um mês depois dos assassinatos de Luís Pifeiro e Joaquim Porcino por Antônio Porcino. Essa última versão nos parece mais sensata devido aos acontecimentos e suas datas a partir dela. Sendo conhecidos pelas andanças pelos vários caminhos que faziam com a burrarada no trabalho de almocreves, os irmãos Ferreira e os Porcino, na folga desses, passam a pegar nas armas e praticar roubos, furtos e até assassinato em Alagoas e Pernambuco.

“Era de se esperar que, desde a chegada dos Ferreira em Alagoas, outubro de 1918, que houvesse entrosamento entre as famílias Ferreira, Porcino e Antônio Matilde. Os três irmãos filhos de Seu José e de Dona Maria Lopez, tanto trabalhavam no sítio, quanto viajavam (almocreveando) como também andavam armados provocando atritos, sozinhos ou entrosados com os Porcinos.”(CC.2012)

O autor, ou autores, nesse relato se equivocam ao citarem Antônio Matilde em separado, pois o mesmo era tio dos filhos de José Ferreira. O jovem Virgolino Ferreira era vaqueiro e amansador de burros e cavalos bravios, como citou o saudoso João Gomes de Lira em seu livro “Lampião – Memórias de um Soldado de Volante”, o que facilitou para que arrumasse um emprego para cuidar dos cavalos do coronel José Aquino Ribeiro no município de Água Branca, AL, em princípios de 1919. Com a sua juventude, a ânsia de aventurar-se cada vez mais toma conta do corpo e mente do terceiro filho de José Ferreira. Ainda no ano de 1919 Virgolino Ferreira adentrava nas pequenas cidades e povoados do sertão alagoano, junto com os Porcino, fazendo e acontecendo.

Há registros de que um desses povoados era o povoado de Olho D’água do Chicão, hoje cidade de Ouro Branco, AL, como narrou o senhor Sebastião Jiló, sendo o próprio a pessoa que mudou o nome do povoado para “Ouro Branco” devido à fartura algodoeira da época na região. No mesmo ano, 1919, em seu segundo meado Virgolino, Livino e Antônio Ferreira partem acompanhando seu tio Antônio Matilde e alguns homens rumo as terras do Leão do Norte com o intuito de vingarem-se de Zé Saturnino no município de Vila Bela, atual Serra Talhada. Desta feita, tendo conseguido a ajuda de Sinhô Pereira, que lhes forneceu o cangaceiro “Baliza”, José Dedé, chefiando seis ‘cabras’ de seu bando para ajudar na desforra. No entanto, Antônio Matilde, além de perder um de seus homens, seu sobrinho Higino foi morto pelos homens do chefe cangaceiro Cassimiro Honório, é baleado na altura do quadril e é levado para a fazenda Carnaúba onde, após se restabelecer do ferimento, é levado de volta para Alagoas por Virgolino e o cangaceiro Baliza. Porém, o tempo de descanso e resfriamento das armas é bastante curto, pois, no início do novo ano, 1920, Matilde junta novamente seus homens e retornam a Pernambuco. No Pajeú das Flores consegue juntar e estavam levando, roubando, cerca de sessenta animais pertencentes ao senhor José Nogueira, quando é barrado a bala por Zé Saturnino e seus ‘cabras’.

Em janeiro de 1921 o bando dos “Porcino”, deste fazendo parte os irmãos Antônio, Livino e Virgolino Ferreira, ataca o povoado de Pariconha, no município de Água Branca, AL. “O bando saqueou os estabelecimentos comerciais do prefeito de Água Branca, Gervásio Lima, e do subcomissário de polícia, Manuel Pereira de Sá”. (CC. 2012)

Em 28 de abril do ano de 1921 João Ferreira, irmão de Virgolino, Livino e Antônio Ferreira, ao ir a cidade de Água Branca comprar remédios para sua sobrinha Lica, filha de Virtuosa, que estava acometida de uma otite, é detido e preso pelo comissário Amarílio Batista. José Ferreira, ao ficar ciente da prisão de seu filho, envia Antônio Rosa Ventura com a missão de avisar aos outros filhos mais velhos, Antônio, Livino e Virgolino, que estavam escondidos no mato, sobre o que estava acontecendo.

Após todos esses e outros acontecimentos é que os pais de Virgolino Ferreira morreram. Dona Maria Lopez sofre um ataque, provavelmente um infarto ou uma parada cardiorrespiratória, no dia 30 de abril daquele ano e, poucas semanas depois, no dia 18 de maio de 1921, o Sr. José Ferreira é assassinado pela volante comandada por José Lucena.

A morte dos pais de Lampião, para variar, também é referida por vários autores em versões divergentes. Usamos como referência para citarmos as datas acima o Auto de Entrega e Recebimento da polícia alagoana quanto aos objetos apreendidos na fazenda Engenho onde se deu o fato. Devemos lembrar que a volante estava à procura do bando comandado por Antônio Matilde, depois do ataque a Pariconha. Abaixo, transcrevo na íntegra, com ortografia da época, o que reza o Auto:

“Copia do auto de entrega e recebimento dos objetos apprehendidos pela força publica, na diligencia feita pelo Capitão Francisco de Barros Rêgo, no dia 18 do corrente mez de Maio na capitura dos assaltantes de Pariconha chefiada pelo indivíduo Antonio Marthilldes, como abaixo. Aos vinte e cinco dias do mez de Maio de mil novecentos e vinte e um, trigêsimo da República dos Estados Unidos do Brazil, nesta cidade de Agua Branca município do mesmo nome do Estado de Alagôas, em caza da Intendencia Muicipal, as dez horas do dia onde presente se achava o Juiz substituto Dr. Nestor dos Santos Silva, comigo escrivão no seu cargo abaixo nomeado, comparecendo o Capitão de Policia Militar do Estado, cidadão Francisco de Barros Rêgo, e em presença das testemunhas abaixo assinadas, declarou que na diligencia efetuada no dia dezoito do corrente, em perceguição de grupo de Cangaceiros chefiados pelo indivìduo Antonio Marthildes, foi apprehendido huma cadeia de relógio de metal Plaquet, um par de brincos declara e um Rifle; objetos estes reconhecidos serem do Senhor Manoel Pereira de sá, sob-comissário de Policia de Pariconha deste município, que os assaltantes conduziram; tendo de nolar [notar] que, o Rifle apprehendido não era propriedade do Senhor Manoel Pereira de Sá; e sim de um dos assaltantes de Pariconha, por ter reconhecido dito, o mesmo senhor Manoel Pereira de Sá em mãos de um deles; que em virtude do reconhecimento das peças de Ouro serem de propriedade do referido Manoel Pereira de Sá, a este lhe foram entregues neste acto e para constar mandou o Juiz lavrar o prezente auto de entrega e recebimento, em que assignou com o recebedor e astestemunhas abaixo. Eu Maximiamo José da Silva escrivão o escrevi. Nestor dos Santos Silva, Francisco de Barros Rêgo, Manoel Pereira de Sá, testemunhas José [....] Pereira, Antonio Pedro do Nascimento. Concluzão: E levo faço estes autos concluzos ao Juiz Substituto, Doutor Nestor dos Santos Silva e faço este termo. Eu maximiamo José da Silva escrivão o escrevi. Concluzos.” (Arquivo Público de Alagoas – Pacote M – 10 = E = 2)

Após pesquisas referentes aos atos cometidos pelos irmãos Antônio, Livino e Virgolino Ferreira nos anos citados, concluímos que muito antes do falecimento de seus pais, eles já estavam no mundo escuro do crime.

Referências 

Jornal de Alagoas – de 2 de junho de 1921
Lampião, o rei dos cangaceiros - Billy Jaynes Chandler
A Derradeira Gesta: Lampião e Nazarenos Guerreando no Sertão - Luitgarde Oliveira Cavalcante Barros
Lampião, Cangaço e nordeste - Aglae Lima de Oliveira
Lampião Seu Tempo e Seu Reinado - Frederico Bezerra Maciel
O Canto do Acauã - Marilourdes Ferraz
Lampião e o Estado Maior do Cangaço - Hilário Lucetti e Margébio de Lucena
De Virgolino a Lampião - Antônio Amaury e Vera Ferreira
Lampião – Memórias de um Soldado de Volante - João Gomes de Lira
Lampião – A Raposa das Caatingas – José Bezerra Lima Irmão
Lampião em Alagoas – Clerisvaldo B. Chagas e Marcello Fausto
Fotos Obras citadas

https://www.facebook.com/groups/lampiaocangacoenordeste/

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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