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quarta-feira, 15 de agosto de 2018

CEL. ISAÍAS ARRUDA – 90 ANOS DE MORTE.. UMA CARTA DO ALÉM...*


Por José Cícero Silva—professor/pesquisador/escritor

Na última quarta-feira, dia 8 de agosto completaram-se os 90 anos do célebre e terrível Assassinato do Cel. ISAÍAS ARRUDA DE FIGUEIREDO ocorrido na Estação do trem de Aurora. Episódio do dia 4 de agosto de 1928 tendo o coronel morrido quatro dias após(8 de agosto do ano predito). Pondo um fim a uma rixa histórica entre os Arrudas e os irmãos paulinos. 

Iniciado com a morte do chefe João Paulino um ano antes, o episódio continua até hoje sendo um dos mais marcantes e tb palpitantes casos que compõem as narrativas historiográficas do Cariri. 

<><> Por conta disso, o pesquisador do cangaço, meu Amigo Jair Tavares, radicado em João Pessoa na PB me propôs um DESAFIO, quer seja, que eu escrevesse uma Carta fictícia e literária como se fosse do punho do próprio cel. Isaías. A fim de se comemorarar os 90 anos da morte do caudilho caririense: filho de Aurora e então prefeito de Missão Velha.


De bom grado, aceitei o desafio de produzir literariamente e do meu jeito, a tal missiva. 

De cara, um dos maiores coiteiros de Lampião no Cariri que, inclusive, patrocinou e ajudou a arquitetar a trama Lampiônica com vistas à invasão de Mossoró, um ano antes da sua morte.

Vejamos-la a seguir...
....
Meus amigos!

Deixai que o tempo e a história pacientemente julguem ao seu modo, todos os seus homens, porque os homens de carne e osso, até hoje e em geral são lobos e inimigos de si mesmos. Por conta disso, sequer com um pingo de justiça e de juízo, jamais conseguiram julgar ninguém.
Apenas vinte e oito anos de vida eu vivi. Tive o tempo necessário para alcançar na vida, o que a eternidade da história exigiu de mim. No fundo eu sei, que o preço que sempre se paga quando não se é compreendido por mais que se queira é demasiado.,, Ainda, deveras grande, o castigo de ter que aprender com seus próprios erros na vida e com os lajedos quentes em que se pisa, a robustez da alma e dos sentimentos. Crescer nas agruras e nunca reclamar em vão da dor. Tampouco, não se entristecer tão fácil diante dos sofrimentos mais agudos. Nunca abdicar de fazer o que por necessidade já se parece imperioso e preciso. E assim a alma da gente se depura, eu imagino,

Nada temi no mundo, senão a falsidade dos amigos que, acaso confiei em qualquer momento. E que eu diria ainda agora, que me foram tão poucos e muito caro.

Viver é isso. Quer seja, provar o tempo todo deste risco iminente que nos ronda dia e noite como um cão danado latindo alto no nosso quengo. Como igualmente, desse gosto amargo que nos molha a língua o tempo todo. Fel e sangue que nos enchem a boca justamente nos momentos mais difíceis e determinantes, tanto na sobrevivência do dia a dia, quanto no derradeiro instante. Quando nos afirmamos ou nos arrependemos do que fizemos.

Travei o bom combate do meu jeito. Diria que, a ferro e fogo. Sem nunca dizer “amém” ao tal destino que pela vida inteira me fizera acreditar que estávamos para todo o sempre condenados ao sofrer, sem dó nem piedade.

Há quem diga que fui por todos estes anos, um inveterado fazedor de inimigos. Mas não. Eu apenas me fiz respeitar e, quando preciso usei dos meus métodos mais ferrenhos. Impus aos inimigos as regras duras e infalíveis do meu jogo. Quem assim mesmo me desafiou e decidiu por jogar comigo, sabia disso. Perdi muito pouco. Como pouco ou quase nada foi a minha disposição para aprender o sentido de qualquer derrota.

Sempre soube que na vida tudo tem um preço. Vencer a qualquer custo foi sempre o meu prumo. Mas somente diante do esforço e do trabalho empreendido. Conquanto, foi este o meu maior desiderato. O meu sentido prática de estar de fato vivo e útil entre os cães do mundo. Nunca dormi em paz com qualquer desaforo não resolvido, 'freviando' na minha cabeça como piolho. Não gosto de senti minha alma em parafuso. Resolvi todos eles sempre no calor dos próprios fatos acontecidos. Pois, para mim desaforo é comida que se come quente. Porque depois dá congestão e bucho inchado. 

Penso que, ‘perder’ ficou mesmo para os fracos. Os piedosos desmiolados. Os ingratos. Os preguiçosos. Os covardes. Os que em vão imaginam ainda agora com medo dos pecados, aplacar nos seus corpos frágeis as próprias chagas de Cristo. E que por conta disso, se puseram de joelhos diante dos seus impiedosos carrascos.

Todos aqueles para quem a vida não passara de uma noite insone de 'malassombro' e medo. Os que se deram ao sofrimento mundano como algo predeterminado e merecido. Os vassalos ingênuos. Os que se acostumaram demais com o sofrimento a guisa de castigo merecido. Os que se benzem até diante de jumentos mancos quando passam pelas encruzilhadas dos caminhos.

Não fui bandido como dizem. Fiz-me forte apenas com as armas que estavam ao meu alcance para assim não ser tragado por toda sorte de violência dos poderosos. Os que nunca me aceitaram como um deles, sequer em fazer uso da tal alcunha de “coronel”. Uma eguagem sem tamanho. Porque muito mais que o “coronel” sisudo gritou forte dentro de mim a voz altiva do jovem homem sobremaneira indignado com as mentiras, as injustiças, a violência e a dureza bruta de uma realidade no mais das vezes, fabricada de propósito para oprimir os que a desdita da vida já os oprimiam além da conta...

Lutei, portanto, com unhas e dentes, contra a minha sina e a imposição dos que se achavam grandes o suficiente para querer escravizar as gentes desse meu mundo chamado sertão. Os que mais sofriam pagando, inclusive, o alto preço por se manterem vivos e abnegados sobre aquele ressequido chão.

Eis a maldição de nascença a que todos os miseráveis dos sertões, acreditavam estar, de algum modo condenados. E assim, me impus ao suposto determinismo da ordem natural das coisas. Não me deixando jamais ser escravo de seu ninguém. Principalmente quando me dei conta de que o paraíso prometido pela resignação dos sertanejos, não estava noutro lugar, senão ali mesmo, onde eles todos sofriam. Fiz, portanto, o que foi preciso para conquistar o meu lugar no tal paraíso. Quem sabe, um pacto de sangue com o ser esperançoso que habitava minhas entranhas. 

Nunca culpei ninguém(senão eu mesmo) pelas escolhas ou pelas lutas que enfrentei. Nem Deus, nem os santos, nem os anjos, nem o diabo. Sempre fui o principal sujeito de todos os meus atos. Êxito ou fracasso há de ser tão somente uma questão de tempo e de oportunidade. Só a essência das coisa me interessavam.

Confesso até que me dei bem, com as opções que fiz e as decisões que tomei. Tive sucesso na minha ousada empreitada de quase três décadas de existência terrena. Quis rapidamente concretizar todos os projetos que sonhei. Tomei gosto pela coisa.,, Segui em frente a passos largos. Acho até que perdi por algum momento a exata noção do limite na dimensão do meu próprio tempo. Tinha pressa de viver e de conquistar o quanto antes, o galardão a que me propus buscar.

Juntei num só espaço ousadia, inteligência e coragem. Logo progredi, ao tempo que também comecei a colher os meus primeiros frutos e um montão de inimigos(diga-se de passagem). Despertei o ódio e a inveja de muitos ricos da região. Minha fama começou a romper fronteiras. De modo que precisei arregimentar de chofre, a minha proteção. Foi o que fiz desde então. Crie também meu bando de proteção pessoal.

Cresci num tempo e num ambiente onde não era comum sequer acreditar nos sonhos. Onde e quando só se podia ser grande de verdade pela força do dinheiro, da violência e do poder político. Custei um pouco para aprender tudo aquilo. Mas, logo superei todos os demais...

De menino pobre, filho de roceiro esquecido no oco do mundo; lavador de cavalo dos potentados nas águas do rio Salgado durante as missas dos sábados e nas feiras do domingo; cheguei ao posto de delegado. Tendo aprendido a ler por mim mesmo, quase num piscar de olhos orientado pelos padres que vinham para Aurora nas festas do padroeiro.
Nasci e cresci às margens do rio Salgado. Tempos difíceis aqueles. Mas o destino havia me reservado algo. Até o dia que um juiz da capital, sob o pedido de um influente padre me fizera delegado. E eu correspondi bem neste ofício. Muito aprendi e em seguida me rebelei pela primeira vez no mundo.

Revoltei-me contra tudo o que eu até então achava injusto, mentiroso e errado. Terminei assim por acabar uma eleição na bala, na terra em que nasci. Perdi por causa disso o meu primeiro emprego. Corri para não morrer. Fui me esconder na vila do Juazeiro. Aproveitei para pedir conselhos ao padre Cícero. Disse-me que eu não era disso. Pediu-me prudência e eu, nem mesmo um resto de fé tinha mais para lhe oferecer. Logo em seguida terminei por me fixar em Missão Velha. Julguei ser ali um bom lugar. Fiz amigos, correligionários e levei parentes para lá morar.

Fui um homem de diálogos. Fiz contatos. Peguei o trem, fui à capital. Falei de eleição e de inusitados projetos políticos. Gostaram de mim. Estariam do meu lado(claro) sempre que eu vencesse. Já me era algo. 

Voltei animado, com novo fôlego e até com um pouco mais de prestígio e de dinheiro na algibeira.

Refleti assim que cheguei. Conclui que precisava de uma pequena guerra para alicerçar de vez a minha paz. Uma ferroada de marimbondo, quem sabe, para o necessário despertar dos adormecidos dos grotões.

As armas de fogo eu conseguiria fácil na terra do padre. Lá eu fiz alguns amigos que também se aliaram ao meu propósito. Mas tudo estava guardado no mais completo dos segredos. Correram-se os dias, finalmente.

Tudo o mais era mistério. Quase um previsível milagre dos acontecimentos; fácil como se fosse mel de engenho a escorrer aos poucos pelos dedos sujos de doce dos meninos. Chegara por fim o momento oportuno que eu tanto queria.

Logo percebi que pelo Estado inteiro o poder da força também estava a fazer seus prefeitos. E, decerto, vi que nenhuma lei se rebelava contra aqueles novos acontecimentos. Estava aberta a porta que me levaria ao paraíso ou até mesmo ao inferno que eu não mais desejava. Não poderia eu, perder a única chance da vida de montar de vez a mula selada que passava a minha frente. Não titubiei. Criei coragem. A sorte estava lançada. Naquele instante, não cabia em meus planos de conquistas o medo da vida e nem da morte. Não podia mais retornar. 

Não sei se porventura Deus naquela hora decisiva me olhava. Mas penso que ele depois me batera palma. Pois, nenhum homem que se preza pode mentir para si mesmo sobre as coisas que confia e acredita. E Deus sabia disso, em relação a mim. Minha sinceridade era do conhecimento dele...

Fui em frente. Sem, no entanto, perder mais tempo com questões relacionadas ao sagrado ou ao profano. Porque na história o que mais interessa é o próprio homem.

Acerquei-me de armas, de cobre e de alguns amigos que confiei naquele instante. Parti. Fui aos finalmente. Expulsei os dirigentes. Destitui sem muito diálogo e com a persuasão de alguns tiros o cel. Senhor Dantas do comando da cidade. E não o que acaso o povo possa pensar dele em qualquer tempo. De repente, estava eu prefeito. Mas não esqueçam! Em seguida fui eleito. 

Fortaleza me deu votos de parabéns e eu, me animei. Abiscoitei rapidamente fama e prestígio. Acreditei na razão da força do meu juízo para amestrar do meu jeito, a ignorância dos homens. Estava fascinado pela primeira vez com o poder que conquistei. Desde então, não sei por que cargas d’água todos passaram de repente a me chamar de coronel. Achei esquisito, mas asseguro-lhes que gostei.

Choveu em meu entorno novos amigos e, com os quais, também a proporção numérica dos meus inflexíveis inimigos. Mas eu nunca confiei sem as devidas reservas em nenhum deles. Nem nos que me diziam amigos sendo inimigos, tampouco nos que, mesmo sendo inimigos, às vezes me eram mais dignos e mais sinceros do que aqueles. Razão porque até hoje desconheço qualquer homem sábio que seja feliz e viva bem sem ter que conquistar a duras penas seus verdadeiros inimigos íntimos. 

A meu ver, são um desastre, todos os que imaginam que ao seu redor só existem amigos. Confiar na lealdade no escuro é um tremendo perigo. Um pecado. Uma estupidez sem tamanho. Os que assim pesam estão definitivamente fadados ou ao fracasso ou quando muito ao anonimato.

Bando de jagunços do Cel. Isaías Arruda

Na função de prefeito, depressa me tornei fazendeiro. Dono de terras. Criador de gado, produtor de cereais. Diria que um homem relativamente rico com tino para ganhar dinheiro nos negócios. Quase um predestinado como diria mais a diante governo.

Como disse, quando me senti invejado e perseguido pela ira dos inimigos criei meu bando de proteção. Jagunços mesmo... Mas modestamente disciplinados sob as duras ordens do seu comandante. Todos bem pagos, confesso, pelos bons serviços prestados. Muito melhor do que os que uma vez compunham o bando do tal Cel. Inácio Zé Inácio. Confiei o comando ao amigo Zé Gonçalves. Um dos homens mais inteligentes e leais que conheci na vida. Que mesmo sem nenhum estudo sabia muito e, muito igualmente, aprendi com ele. Ademais, quem foi bom vaqueiro na caatinga braba deste mundo haveria de ser também um bom condutor de homens rudes. E o foi sem par. Muito do que fiz confidencie(quando deu) com ele.

Ainda quanto ao bando, não nego que à distância fizeram aqui acolá algumas estripulias. Algumas sem o meu apreço ou conhecimento. Outras com meu crivo quando era absolutamente necessário. Como da vez que puseram fogo e destruíram a ponte do trem no Olho d’água nas proximidades de Ingazeiras. posto que mexeram comigo os chefetes da RVC e ainda cometeram a desfeita de romper o contrato sobre o fornecimento de madeira que firmamos. Como ainda, se negaram a pagar o resto do dímetro que me deviam por direito. 

Por conta disso fiquei de mal com o então governo que prometera me processar e retaliou o diabo a quatro. Uma vez tive que expulsar do bando, alguns cabras por andarem brigando, criando problemas sem ser preciso...

O grupo também se precipitara quando resolveu dá cabo do João Paulino - chefe dos irmãos Paulinos d'Aurora. Mas nada disso me impôs medo. Toda minha vida foi administrar conflitos e desafiar mim mesmo.. 

Ninguém me amou no mundo, além da minha Estelita com quem casei no início da década de 20 na Aurora. Além da minha pequenina Orlandina, minha filha. Só por causa delas, vez por outra, sentir o raro temor de morte repentina.

No mais, posso dizê-los que o cangaceirismo entrou na minha vida mais por acaso do que por necessidade. Foi, por assim dizer, um acidente de percurso. Ou ainda, um ato falho. Mas, tudo o que foi é porque era mesmo para ter sido. 

Explico: o bando que formei para me proteger dos inimigos em umas das suas incursões mais distantes terminou por conhecer outras gentes por aí, Assim, me trazendo notícias de Décio Holanda do Pereiro, Júlio Porto e Massilon. Por sinal, foi por intermédio deste último, que acabei por conhecer o próprio Lampião. Num encontro acertado numa manhã de sábado na fazenda Ipueiras de minha propriedade na Aurora, confiada aos cuidados de Zé Cardoso, meu parente.

Nada se diz, mas naquela reunião havia mais gente interessada no lucrativo negócio de invadir Mossoró. Uma empreitada que não geraria apenas lucros financeiros, mas acertos de contas, desejo de vingança e muitos dividendos políticos para tantos outros no seu entorno. 

Após a reunião predita, Lampião, homem experiente, não quis ficar na referida fazenda. Segundo ele, seria um alvo fácil para os seus perseguidores(as volantes que vinha desde Mossoró no seu encalço). De fato, a fazenda(Ipueiras) ficava bem nas proximidades da cidade. Preferiu então, o capitão, o seu antigo coito... Um esconderijo estratégico bem no alto do inóspito serrote do Diamante, sob os prestimosos cuidados do vaqueiro Miguel Saraiva.

Pediram-me para aquela empreitada, além de homens, alguns animais de monta, armas, munição e dinheiro. Acenei com tudo. Apenas solicitei que mantivessem segredo, isto é, deixassem meu nome distante dos acontecimentos.
Final de junho quando, enfim, partiu o bando sob o comando do afamado rei do cangaço. Nem sei como o capitão Virgulino se deixou levar pela conversa mole daquele tal de Massilon Leite. Um aventureiro falastrão querendo ser jagunço a pulso, porém, mais parecia um caixeiro-viajante tangedor de burros e jogador de carteado. Penso, contudo, que o capitão fora mais por curiosidade de conhecer de perto em seus meandros as terras do riogrande, do que pelo dinheiro que lhe prometeram.

Em meu compromisso firmado sob a forma de patrocínio vos garanto, não tive nenhuma culpa pelo ocorrido, visto que eu também fui convidado e, por isso mesmo enganado acerca de um suposto lucro fácil. Além de prestar favor a uns amigos distantes. Emprestei meu dinheiro, pouco mais de 30 contos de réis contados, com a garantia de que era um investimento exitoso e seguro. Não tive outro interesse na tal invasão da povoação potiguar. Nem tampouco, do que fizera antes pelos caminhos, Massilon aquele mentiroso desgraçado.

Naquele fatídico dia 13 estava eu em Missão Velha onde era prefeito. Fiquei sabendo dias depois pelo trem, acerca grande ato malogrado. Não esperei muito. Antecipei-me aos fatos logo que percebi que Lampião estava em perigo e uma vez acuado pelas volantes de três estados, voltaria certamente para o coito da Ipueiras e Diamante. 

Peguei o trem. Rumei para à capital. Fui ter com Moreirinha meu aliado político; chefe do Governo, então presidente do Ceará. Novamente expliquei-lhe meus planos. Ele aquiesceu deveras comigo. 

Agora, além de livrar meus couros do fracasso iminente de Lampião com seu bando, negociei outros possíveis lucros com o Governo. Moreira da Rocha tinha interesse em dizer para todos que deu cabo dos facínoras e temíveis bandoleiros nordestinos. Os jornais da época não falavam de outra coisa.De modo que deixou tudo a cargo do major Moises, curiosamente, meu parente. 

Voltei. Dei ordem à Cardoso. Falei-lhe dos últimos acontecimentos e das consequências do tal fracasso. Era teimoso. Não achou razoável a linha dos procedimentos. Pensava como Moises. Tinham eles, uma outra linha de raciocínio. 

O major pedira-me num bilhete rabiscado; que eu me aquietasse e deixasse as coisas sob seu tirocínio. Mantive-me mesmo assim preocupado com o ocorrido. Não me agastei. 

Retornei à Missão Velha. Deixei que Viana o agente da RVC de Aurora me pusesse a par de todos os vindouros acontecimentos. Voltei de troler já que não era mais prudente esperar o trem do outro dia. Eu precisava correr contra o tempo...Foi o que fiz.

Depois de Limoeiro, a coisa ficou mais preta. Jornais davam conta de que a morte ou prisão de Lampião se daria a qualquer momento. ‘Mas o homi era muito esperto, um verdadeiro preá das caatingas’. De todos os fogos e dos piquetes, malgrado os pouquíssimos homens que ainda lhe restaram e, acossados pelo cansaço, a fome e a pouca munição, ele ainda assim saíra ileso de todos os conflitos. Mesmo em absoluta desvantagem de armas e de homens. Era de fato, insuperável na sangrenta batalha do seu mundo catingueiro. Não dava tiro à toa. Munição pra ele naquele momento era ouro.

Como supus, vinha mesmo na direção da Aurora. Atravessara por fim, a serra da Várzea Grande. Venceu o fogo que se deu no Ribeiro no riacho do Bordão do Velho. Amanheceu com seus cabras já nas matas seguras da Ipueiras. Mas, deixei ali tudo pronto.

O trem da volante já estava estacionado na estação esperando Lampião e seus comandados, vivos ou mortos. Major Moises ainda se mantinha distante demais do palco do conflito. 

Nascera o novo dia...E quando enfim, o sol apontou seus primeiros raios: Um intenso tiroteio deu as boas-vindas para o bando. Lampião gritou: 

- Fomos traídos cambada! Viva Jesus Cristo e o padre Cícero do Juazeiro! 

E os cangaceiros em uníssono lhe responderam: 

- Não temos medo. Deus seja louvado, capitão!

Em disparada corriam atirando pra todos os lados. E, quanto ao veneno, aquilo foi ideia de Miguel, o tal vaqueiro.

Porém, esperto demais, Lampião não caiu em nenhuma dos engodos tramados. Quando se deu conta dos tiros e, em seguida do incêndio no baixio; empreendeu fuga com seus homens pela margem direita do velho açude. 

Cardoso depois me contou tudo em detalhes...

Danado. O major ainda continuava longe demais dos fatos concretos.

De certo modo, fiquei feliz em saber da fuga do capitão, que não nego, era meu amigo. Fui seu coiteiro, afora esta vez, asseguro, ele nunca foi embora sem me deixar um bom dinheiro.

Não me enraivo quando me chamam de bandido, mas juro que me dói por dentro quando me têm como traidor e covarde. Não foi nada disso, eu vos prometo que não minto. Em nome de Deus ou dos seiscentos diabos!

Perdi um amigo. Acrescentei na minha lista mais um considerado inimigo de vulto e peso.

Deixei-lhe até uma carta escrita contando tudo(tim tim por tim tim) sobre o meu aperreio e tudo o mais que se passou comigo. O portador, uma ex-vaqueiro das Emboscadas não chegou a tempo de entregá-lo no cruzamento da linha do trem depois da Ingazeiras pras bandas do Morro Dourado, quando Lampião fugia na direção de Milagres e Mauriti rumando, enfim, na direção Conceição de Piancó na Paraíba.

Nunca mais o vi. Apenas tive aqui acolá, algumas notícias vagas dando conta da sua passagem pelo Coité, dizendo um dia se vingar de mim. Um padre foi quem me trouxe este recado. Desde então me preparei pra isso. Fiquei de olho na Lagoa do Mato na serra da Goianinha.

Não sei até hoje se por conta de tudo disso, posso dizer seguramente, que estou em paz com Deus e com os homens. Só sei que a vida não me foi tarefa fácil. Foi preciso ser fogo e pedra para conseguir chegar aonde cheguei. Isso é fato.

E, não obstante todos estes acontecimentos fatídicos, como então se daria a história do fim?

Passei o resto daquele ano remoendo estes tormentos. Veio o ano de 28, meados dos meses de julho e agosto... A velha rixa com os Paulinos e os Santos da Aurora não me deu nenhuma trégua. Parecia um imbróglio que não tinha mais fim.

Quando parava e se arrefecia um pouco era porque estava a tomar novo fôlego. Eu tinha efetivamente que preparar chumbo grosso. 

Viana sempre me cobria de informações e de cuidados enviando-me recados escritos, ou notícias pelo código Morse da estação do trem. Adoecera naqueles dias o agente.

Eu não via poder de fogo nos Paulinos. Faltavam-lhes um pouco mais de coragem e muito dinheiro. Contudo, é mister saber que os grandes inimigos nunca dormem. E eu os subestimei neste quesito, pois nunca é prudente permitir que os inimigos se reúnam contra a gente sem uma peleja atras da outra. Havia uma trégua estranha.

Os paulinos foram usados por muitos dos meus inimigos, inclusive gente grande daqui e do além-fronteira.

Tudo parecia tranquilo. Porém nunca gostei quando avistava um céu de chumbo no horizonte. Nem urubus brincando sobre minha cabeça. 

Mais uma vez viajei à capital. Tinha muitos negócios a resolver. Dias tranquilos aqueles. Edifiquei grandes obras sociais na Missão Velha. Novos correligionário estavam do meu lado. Estava feliz, como nunca estive.

Na volta de Fortaleza contabilizei bons lucros, inclusive políticos. Namorei, visitei amigos. Esqueci um pouco das intrigas da minha vida cotidiana. Vinha na companhia dos primos.

Viana há dias que não fora ao trabalho na estação do trem. Estava doente me disseram o cobrador e o maquinista. Fiquei assim sem suas notícias acerca do que se passava na terrinha. Alheio demais dos acontecimentos.

Estelita tinha até pedido para que eu deixasse a política e fôssemos morar de vez na Fortaleza. Que eu poderia me tornar na terra de Alencar um grande comerciante. Fiquei de pensar qualquer dia em tudo aquilo. Ela adorava contemplar o mar. Era filha daquele litoral bonito. 

Nossa filhinha Orlandina haveria de crescer muito bem, sob os ventos saudáveis e frescos do grande mar. E aprender muitas letras. Pensei nisso durante a viagem. Queria mudar meu rumo e fazer novos planos...Mas não é tão fácil assim a gente não ter que aceitar de bom grado o seu destino.

Cochilei um pouco. Nem vi quando passei nas Lavras. Só despertei no riacho fundo(na pequena estação do Iborepi). Em seguida, fiquei tagarelando umas amenidades que não lembro. Quando me dei conta o trem já adentrava a bela paisagem de Aurora ladeada pelo rio que parecia correr ao contrário do trem. Na estação de Aurora eu iria descer tomar um café e talvez rever algum amigo. 

De repente, quando o trem ainda deslizava sobre os trilhos. Um barulho de gente... Senti um cutucão na constela. Outro e mais outros. Seguida de uma sensação de frio e um formigamento na barriga. Um afã no peito. Uma tontura. Um repentino cansaço. Uma falta de ar. Um gosto diferente na boca.

Quando em seguida, vi a cor do meu próprio sangue pintando de vermelho a parte inferior do linho meu terno cinza. Fortes pisadas sobre o assoalho do vagão onde eu estava. Som de batidas nos acentos. Uma correria. Uma gritaria de gente dizendo: - É tiro, é tiro!

Tentei pegar a arma que eu trazia comigo. Não deu tempo. Tampouco tive a força necessária em minha mão para segurá-la no tempo devido. Pela janela vi o meu primo correndo na direção da rua. Estava em perseguição dos meus agressores. Meus antigos inimigos aurorenses.

Tentei sair da ali. Mas foi em vão. Apenas alguns passos na direção da porta de acesso à plataforma... Sustentado sob os braços das pessoas desci do trem. Puseram-me sobre a pedra morna da velha estação que muitas vezes pisei altivo com meus passos firmes. Estava então abatido como um pássaro canoro em seus últimos estertores. Mas eu estava calmo. Não era medo o que eu sentia naquele instante. Era saudade e desilusão da vida.

E, assim mesmo sob a rês do chão ainda enxerguei, ao nível dos sapatos e dos chinelos da multidão que me cercava o céu do mundo daquela Aurora pela última vez.

Roucamente com a voz cansada ainda expressei: - Covardes, covardes! 

Ao que respondeu meu outro primo: - Foram os paulinos Isaías, foram os paulinos. – Mas eles vão pagar por isso, completou.

Ainda vi também o farmacêutico dizendo: 

- “o estado do coronel é grave. Chamem depressa o dr. Sérgio Banhos de Iguatu. Avise ao pessoal de Missão Velha. Pois estar muito grave o coronel. Mas ele é jovem há de aguentar, quem sabe.” dissera ele.

Quase sem visão, ainda me foi possível vislumbrar o meu velho amigo Augusto Jucá, pedindo para que me levassem para a sua casa. Depois adormeci. Sem senti nenhuma dor. Apenas com uma sensação estranha de quem ia morrer assim, tranquilamente, logo que os olhos se fechassem e quando dormisse. Dormi suavemente...

Era uma tarde morna do dia 4 de agosto de 1928. Um ano de muitas mudanças em que todas as promessas acumuladas por minha vida inteira iriam ser realizadas de vez em minhas mãos. Estava disposto a mudar.

Nada mais que se diga.

Nada puderam fazer os dois médicos(Banhos e Antenor) que me assistiram durante os quatro dias que ainda tive de vida. 

Durante todos aqueles dias, homens disfarçados de bêbados retirantes, mendigos e de vendedores de cavalos ficaram pelos arredores da cidade, bem como no entorno da estação e da residência em que eu me encontrava moribundo. Homens dispostos e de confiança armados até os dentes, com a missão de garantir a minha segurança e, que também tentaram vingar a minha desdita.

No dia oito daquele mês, o bando estava pronto para invadir pela região de Ingazeiras o lugar onde moravam meus assassinos. Mas, minha familiar ordenou que não.

Parti finalmente às 6h da manhã do dia 8 de agosto daquele ano. Meu corpo foi de troler para Missão Velha onde uma multidão entristecida me esperava pela derradeira vez na mesma estação em que tantas vezes cheguei com boas notícias e grandes novidades. 

Fui sepultado à tardinha após a missa, no antigo cemitério da terra em que fui prefeito e que também amei.

Quis o destino, todavia, que na mesma terra em que nasci se findassem os meus dias. 

Foi assim que tudo aconteceu de verdade. Tudo o mais, ou é incompreensão subjetiva dos fatos ou pura má-fé dos que não aceitaram até agora o necessário acerto de contas do passado com o presente e o futuro, sob o pano de fundo da história.

E lá se foram 90 anos... Ainda tem quem não acredite na eternidade.
Um forte abraço.

De algum lugar do passado.
Cel. Isaías Arruda de Figueiredo.
....................
José Cícero
Aurora – CE.
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