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segunda-feira, 20 de julho de 2020

APRESENTO AOS AMIGOS ANTONIO SILVINO

Por Antônio Corrêa Sobrinho

Apresento aos amigos a, provavelmente, última entrevista à imprensa do primeiro Rei do Cangaço, o Rifle de Ouro, ANTONIO SILVINO, concedida ao diário carioca O JORNAL, poucas horas antes de sua morte, publicada na edição de 05.08.1944. SILVINO que completa 76 anos de morto no final deste mês, e, tal qual o seu êmulo Virgulino Lampião, merece ser lembrado por todos nós que cultivamos o cangaço.


O FAMOSO CANGACEIRO ENTREVISTADO NOS ÚLTIMOS INSTANTES DE VIDA – “DE PÉ NUNCA TIVE MEDO, MAS DEITADO NÃO QUERO MORRER” – “NÃO TENHO MEDO DO INFERNO, MAS NÃO QUERO IR PARA O CÉU” – NUNCA ROUBEI NEM DESONREI NINGUÉM

JOÃO PESSOA, julho (De Luiz Gomes e Abelardo Jurema para a Meridional) – Há alguns meses, correu em Campina a notícia de que Antonio Silvino, o famoso bandoleiro que assombrou as populações de nossas caatingas, cariris e sertões, se achava gravemente doente em uma água-furtada na rua Arrojado Lisboa, atraindo assim a atenção de todos e sobretudo daqueles que ainda se recordavam da história palpitante do cangaceirismo nordestino, da qual aquele homem de 72 anos era um personagem de primeira plana.

NUMA ÁGUA-FURTADA

A rua Arrojado Lisboa passou a ser palmilhada por homens de todas as classes e profissões. Até professores procuravam conhecer Antonio Silvino. O que restava do homem do cangaço era um ancião pendurado numa rede, alquebrado fisicamente, mas com o espírito esclarecido, vivo, respondendo a todas as perguntas e divagando sobre os homens e as coisas com aquela vaidade que possuía de brilhar nas palestras, como um pseudo homem de letras, querendo se fazer de entendido em tudo.

Mas, diga-se de passagem, se Antonio Silvino não era culto, pelo menos mostrava uma inteligência de primeira ordem. Não parecia o bandido que entrou na Detenção de Recife, sem conhecer uma letra de alfabeto.

Quando, setenta e duas horas antes do seu falecimento, estivemos em sua casa, numa tarde álgida e chuvosa dos últimos dias do mês de julho, fomos encontra-lo num estado de profunda dispneia, naquela alforja que dava a impressão de uma furna guardando uma fera que de fora apenas tinha os olhos saltitantes e acesos.

SILVINO, NÃO, CAPITÃO DE CAMPO

Como vai passando, Silvino? Foi a nossa primeira pergunta, que o velho não deixou sem esta advertência, interessante e filauciosa:

“Silvino, não, capitão.”

Mas, interrogamos. Capitão de que milícia, do Exército, da Polícia, da Marinha ou da Guarda Nacional?

Não, respondeu o velho bandoleiro. Capitão de campo, como sempre.

A seu lado, estava uma dama da sociedade de Campina, lendo os Evangelhos, nesses exercícios que ajudam a morrer sem lamentos.

Estranhamos ao capitão de campo que ele, que tinha saído da cadeia de Recife com fama de espírita e posteriormente de protestante, estivesse ali a ouvir com tanto respeito a religiosidade orações dos irmãos de São Pedro, parecendo assim uma conversão ao catolicismo.

NUNCA TIVE MEDO DE MORRER, MAS AGORA...

Ainda desta vez Antonio Silvino não deixou passar sem uma explicação, dizendo:

- “Nunca tive medo de morrer em pé, quando campeava pelo Nordeste, e agora, deitado, não quero morrer, se bem que não tenha medo do inferno, pois, se pra lá for, disputarei um lugar de chefe, um posto de comando qualquer. Pro céu é que não quero ir, pois, ao que me consta, lá não há campo pra luta nem para capitão do mato como sempre fui. Quero é viver mais um pouco, mesmo com esta agonia que estou sentindo, com esta falta de ar, com esta falta de conforto. Essas palavras que a menina está lendo são do Evangelho, o que quer dizer que são palavras de Deus. Em todas as religiões do mundo a palavra de Deus é uma só.”

Até parecia que Antonio Silvino já tinha lido o “Paraiso Perdido” de Milton, naquela estrofe que tão bem se ajustava ao seu pensamento naquele minuto: “É melhor ser rei no inferno do que soldado no céu”.

HOMENS DA JUNGLE

Homens como Silvino não aceitam a igualdade. São individualistas por instinto. Querem estar sempre mandando, ainda mesmo que imperando entre naturezas selvagens, sem conforto e sem lei, mas sempre expedindo ordens e forçando o seu cumprimento. Homem da jungle.

Ali estava um homem quase sem vida, porém senhor de si mesmo, cheio de altivez e com o espírito presente à realidade do momento. Via a morte próxima e ainda era o mesmo homem sem o acabrunhamento tão comum entre os mortais nestas horas supremas.

Depois de darmos tempo a ele se perfazer, procuramos detalhes de sua vida pregressa. Era inútil. O homem se aferrava na tese de que o passado o vento tinha levado.

VINTE E CINCO ANOS DE RECLUSÃO

- “Minha vida, disse Silvino, todo mundo conhece. Entre as minhas aventuras e o presente, há vinte e cinco anos de reclusão que alteraram o meu destino. Mas, digam lá fora que nunca roubei nem desonrei ninguém, e se matei alguém, isso foi em defesa própria, evitando cair nas mãos de inimigos e dos macacos.”

Ele batizava de macacos os soldados da Polícia.

Antonio Silvino esquecia-se dos quadros que atestam a sua ferocidade... a paisagem macabra que deixou atrás de si durante vinte e um anos de cavalgada sinistra na trilha do crime. O testemunho dos seus contemporâneos está aí, estigmatizando a sua vida criminosa, de nada valendo as dirimentes que alega nem as lendas que se propagaram, lendas criadas na imaginação popular tão fértil e tão plástica às primeiras impressões e tão facilmente impressionável pelas façanhas novelescas.

No júri popular soberano, dizia-se com muito ajuste à realidade psicológica de nossa gente que se todo criminoso fosse submetido a julgamento imediatamente após o delito, a condenação seria no grau máximo, mas que, se se deixasse o tempo correr, a sua ação cicatrizante se faria sentir e a absolvição viria como veio em casos talvez mais tremendos do que os do próprio Antonio Silvino.

Continuamos o nosso interrogatório. Insistimos ainda em colher de Antonio Silvino algo de novo sobre a sua vida. E a resposta foi inteligente.

CHEIO DE ESPERANÇAS NA JUSTIÇA DE DEUS

- “A justiça dos homens me condenou. A justiça da Revolução de 30 me absolveu, dando-me liberdade. A doença agora me prende e eu só tenho a aguardar o pronunciamento da Justiça de Deus. E ela é maior do que todas as justiças da terra. Levo um consolo, que julgo influir no julgamento divino. Tudo quanto fiz distribuí com os pobres, terra, gado e dinheiro; nada mais tenho hoje, a não ser filhos educados com o meu próprio esforço e que hoje me esquecem inteiramente.

“Faço questão em dizer que vivo abandonado, pois só uma filha que mora em Fagundes, neste município de Campina, veio me ver no estado em que me encontro. Afora este conforto moral, devo o amparo que tenho agora nesta casinha modesta á minha prima Tidula e a este moleque que aqui está, o Francisco Alves, que não me abandona um só momento, como um cão fiel.”

DESTINO DE BANDOLEIRO

Que destino de bandoleiro! Depois de ter o mundo a seus pés, estava vivendo às custas da bondade humana. Eram motoristas, viajantes, pessoas do povo, gente enfim cheia de sentimento de solidariedade humana que estava auxiliando Antonio Silvino, esquecendo-se dos seus crimes, mas assistindo a um enfermo até mesmo com orações.

Ante aquele quadro, têm razão os que pensam que “o crime não compensa”. Ainda há pouco, visitando a Cadeia Pública de João Pessoa, vimos entre os presos comuns, em suas roupas zebradas, o célebre Zé de Totó, que depois de quarenta anos de vida criminosa, perdeu até mesmo a fama, um dos elementos que mais alimentam o instinto criminosos dos homens fora da lei.

“DEUS LHES ABENÇOE”

Estava já escurecendo e o Rei do Cangaço se mostrava cansado e incapaz de continuar a nos prestar atenção. Chegava o moleque Francisco com um cobertor. Fazia frio. Campina estava vivendo a 16 graus acima de zero. Era uma temperatura que não fazia bem a um homem dispneico. Sentimos que poucas horas restavam de vida a Antonio Silvino. Olhamos bem para a sua fisionomia. Cabeça chata de nordestino, cabelos brancos, tão brancos como a sua barba crescida, olhos claros e ainda vivos, parecendo até que daquele corpo eram os últimos órgãos a condensar avaramente as últimas centelhas de vida de Antonio Silvino.

Despedimo-nos dele. Dissemos algumas palavras de conforto. Do fundo da rede, num esforço que bem podemos avaliar pela sua expressão momentânea de aparente robustez, surgiu o busto de Antonio Silvino, lançando-nos um adeus patético: “Deus lhes abençoe e muito obrigado pela visita”.

Setenta e duas horas depois, mal tínhamos chegado de Campina e já a notícia da morte de Antonio Silvino se espalhara.

Obra de pura coincidência. Ele que tanto gostava de publicidade, recebendo na Casa de Detenção de Recife e de Olinda com a melhor boa vontade os repórteres e visitando, quando solto, as redações dos jornais das cidades que percorria, numa tentativa sempre interessada de estar em evidência, até mesmo nos últimos momentos, no fundo de uma cangocha, sentindo-lhe, aos poucos, faltar o contato com o mundo, foi visto por dois repórteres que ali foram sem pensar que iriam divulgar as últimas palavras do abencerragem do cangaceirismo no Nordeste.

Antonio Silvino já não existe. Manoel Batista de Morais dorme para sempre no Cemitério do Carmo de Campina Grande.

O JORNAL (RJ) - 05.08.1944


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