Por Rangel Alves
da Costa*
A chuva não é
tão presente aqui como em outros lugares. O que para muita gente é um
transtorno, algo que acontece para prejudicar, chega como verdadeira benção e
contentamento para o povo de minha aldeia.
Minha aldeia é
linda, é cheia de exuberância e graciosidade, porém é seca, esturricada,
calorenta e angustiante. O povo daqui é feliz, mas seria muito mais se tivesse
ao menos um pouquinho das chuvas que caem com tanta abundância em outros
lugares.
Seria mais
justo que fosse assim. Noutros lugares menos enxurradas e destruições, menos
deslizamentos e inundações, e aqui uma natureza mais verdejante, mais água nas
fontes e muito mais prazer em viver.
E também
porque o povo da minha aldeia reverencia cada pingo de chuva com verdadeiro
endeusamento. Cada gota que cai é sentida no olhar, na pele ou no vivenciar
como um evento de especial significação. Não seria errado dizer que a chuva tem
o dom de aflorar os sentimentos mais profundos.
Talvez seja
por isso que o povo de minha aldeia seja conhecido como um povo poeta. Mas de
uma poesia que vais sendo escrita muito lentamente, num verso em cada estação,
numa rima aqui outra acolá e muitas vezes passando anos e anos sem uma métrica
de sentimento sequer.
Como filho de
minha aldeia eu não poderia ser de outra forma, ter um sentimento diferente
daquilo que está enraizado na minha linhagem, no meu povo. Também sou poeta da
chuva, canto o pingo d’água, versejo em cada gota que cai. Contudo, nasci ainda
mais afetado sentimentalmente.
Se o meu povo
espera chover para a inspiração, já sou tomado de entusiasmo sentimental assim
que o tempo começa a nublar. Muitas vezes, basta que seja entardecer e o tempo
tristonho traga na brisa um cheiro molhado e eu já começo a versejar dentro de
mim.
Quem dera
fosse construído somente assim e no peito ficasse guardado até tomar uma forma
escrita; quem dera que a inspiração surgida não tivesse também o dom de ir além
do apenas sentir; quem dera que o tempo apenas nublado não fizesse logo chover
no olhar.
E quem dera
muito mais, quem dera. Quisera apenas olhar o templo nublado e não me tomar de
saudades, recordações, lembranças de outras estações que se foram sem lavar a
minha alma, sem intimamente respingar as boas esperanças; quisera ter mais que
uma expectativa de chuva e sim uma trovoada que desse para escrever um longo e
lindo poema sobre a terra fecunda sem a semente espalhada.
Se o povo de
minha aldeia soubesse que sou diferente, que possuo uma relação muito maior com
o tempo nublado, com os pingos de chuva que estão sempre diante do meu olhar e
com toda a pluviosidade da vida, certamente diria que o sonhador foi além da
inspiração para viver dentro de si a ilusão da poesia.
Mas não sabem
por que sou assim, e é bem melhor que assim seja. Ninguém consegue mirar esse
sol que se alastra feito mil vulcões sem sonhar com o pingo d’água que cairá. E
porque enfrento o sol de olho aberto e avisto a vida além da linha do
horizonte, sei muito bem o significado de cada entardecer e de cada momento
nublado que surge.
Mas quando os
pingos caem em abundância, logo se tornam suficientes para que o povo de minha
aldeia perca aquele encantamento de antes, com a expectativa das chuvas. No
primeiro pingo a poesia, o verso alentoso, mas depois o acostumar tedioso e
numa normalidade mais tediosa ainda. E vejo tudo diferente, e por isso mesmo
sempre ajo diferente.
Acostumei
trazer a nuvem no olhar e ser poeta, e sofrer e chorar, e sentir o prazer e a
dor, todas as vezes que não sinta motivos para ser diferente. Todas as tardes,
levando sempre minha nuvem, sem precisar olhar o horizonte para saber se outras
escurecidas estão de chegada, sigo a vereda adiante de minha aldeia e vou em
direção à montanha. E ali me faço presença tão verdadeira que sempre retorno
encharcado.
Enquanto o
povo de minha aldeia continua olhando para o alto e esperando a chuva, chego
completamente banhado. E se quisessem saber o motivo diria apenas que guardo e
levo comigo uma nuvem chamada sentimento. E um sentimento tão verdadeiro que
até a tristeza é passo para o meu autoconhecimento.
Poeta e
cronista
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