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sábado, 24 de maio de 2014

Memórias de uma Cabeça Emancipada


Hoje é nada menos que o dia que arrancaram minha cabeça fora com um facão de quase meio metro. Antes, jogaram meu corpo já desfalecido no chão duro e cheio de espinhos. Meu braço esquerdo cravado de balas, meu pulmão esfaqueado e quase todo o sangue já havia saído de meu corpo. Fui arrastado por mais ou menos cinquenta metros pelas pernas, cada risada de um macaco me dava ódio, mas eu estava imóvel. Olhava através de um único olho que me restava, mal dava para ser aberto de tão inchado que se encontrava, mas eu procurava atentamente uma chance de escapar daquele calvário. Ninguém voltou para me socorrer, eu não escaparia.

Engoli sangue, desfaleço pela primeira vez antes dos dez metros iniciais. Começo a sonhar. Entrei no cangaço aos dezesseis anos, por volta do ano de 1928, não porque fui obrigado, mas eu queria muito. Eu ficava vendo jornais velhos que serviam para enrolar mamão na feira de Itabaiana, nele estava estampado o grupo de Lampião em Juazeiro do Norte visitando o afamado Padre Cícero em 1926. Se o santo padre confiava no Virgulino quem seria eu para não fazer o mesmo? Eu fazia armadilhas com grude de jaca para pegar passarinho quando era menino, matava tejú com foice, pegava preá na arataca... as pessoas diziam que eu era gente ruim, mas eu não era, eu era criança. Sou neto de escravos, tenho a pele preta e o sangue nos olhos, aprendi com meu pai a nunca me render. Sou valente, medo só tenho da morte, pois quero viver o suficiente para adestrar meus instintos.

Um dia qualquer, o povo de Itabaiana se alertou, Lampião ia entrar na cidade, ele viria pelo povoado Pé do Veado. As casas se trancaram como que num toque na planta dormideira, o povo se armou, a polícia se alvoroçou, Maria Carreiro montou seu cavalo branco e partiu com espingarda em ombro e eu também queria sair de casa. Era o ano 29, fui pelo quintal que ficava já fora da rua, perto do Tanque da Pedreira e fui de encontro ao bando. Levei um punhal que havia roubado da venda de Sinhozinho Dutra, esta arma servia para cortar fumo para uso próprio, num descuido, passei pela janela e a coloquei na cintura. Este foi meu primeiro delito. 

Vi ao longe o bando arranchado às margens de um riacho. Não pareciam amedrontadores como diziam os mais velhos como forma de punição aos mais jovens. O medo era maior do chefe não me aceitar no bando. Fui em disparada, o grupo se alertou, eu estava sozinho no pasto vazio e seco, sem uma pintinha de rama verde. Um dos cangaceiros mirou sua arma na minha direção e atirou. Não acertou e se tivesse acertado eu não teria sentido, eu estava determinado. Comecei a correr na direção deles e Lampião, em pessoa mirou sua arma, com calma ele disparou. Não me acertou. Estava a cinco metros deles e comecei a gritar.

- Não atire, não entre em Tabaiana, tá cheio de macaco esperando ocêis.
Lampião disse aos comparsas.

- Num mate o minino não, ele pareci tê o corpo fechado e nos trôxe nutiça. Quê qui tu qué?

- Quero í cum ocêis, sô valente mais que Cavalo do Cão!

- Ôxi, o moleque qué virá ômi! Disse Volta Seca, este mais jovem que eu.

Lampião olhou para o horizonte, parou por alguns minutos e respirou. Olhou para trás e disse.

- Eu dêxo tú í cunosco, mais tem qui pasá por uma provação. Leve um biete ao Sinhozin Dutra e ardepois vorte.

Meu coração bateu mais acelerado que sapatilha de dançarino e aceitei a encrenca. Peguei o pedaço de papel dobrado em quatro e corri mais que o vento, meu pensamento era só um: será que o bando estaria no mesmo lugar quando eu voltasse? Será o que tinha escrito no bilhete? Eu nem o abri, pois nem sabia ler mesmo que olhasse as letras. Era um tom indecifrável assim como as línguas estrangeiras a um leigo. 

Cheguei ao centro da cidade, era um sábado, dia de feira, seria fácil encontrar Antônio Dutra. Fui até sua casa, esta que ficava perto do centro que se encontrava vazio, as bancas com os produtos e o povo trancado. Esmurrei na porta do ex intentende e ele não respondia. Talvez por achar que eram os cangaceiros. Resolvi dar um grito e me identificar.

- Seu Tonho, sou eu Mané de Totonho, neto de Zé Preto das Laranjeira.

- Que é que tú qué, muleque?

- Vim ti trazê um biete, é de de Lampião, é ugente.

A janela da casa na rua da Vitória Velha começou a se abrir de fininho, uma cabeça sai e olha para um lado e para o outro na rua deserta. O senhor olha pra mim com um olhar misto de curiosidade e animação, logo estende o braço e me pede.

- Me dá o bilhete. 

- Só dô si ocê mi deixá entrá e lê in vóiz arta.

- Tá bem, moleque desgramado, pode entrar.

Antônio Dutra começa a ler.

ILLMO. SR. CEL. ANTONIO DUTRA DE ALMEIDA
LHE FAÇO ESSA PURQUE SEIO QUE O SR. PODE E NÃO EGNORA. MANDO ESSE BIETE PEDINO QUE ME MANDE CINCO CONTO DE RÉIS E MAIS GUARNIÇÃO PRA MEUS MININO QUE TÃO SE ARMA I MUNIÇÃO, MAIS U QUE NÓS TEM É CAPAIZ DE DERRUBAR MAIS DE CINQUENTA MACACO, INTÃO É MIÓ MANDÁ Ô NÓIS INVADE I NUN DÊXA NINGUÉM DI PÉ. VÔ ISPERÁ COM URGENÇA SUA RESPOSTA.
CAPT. FERREIRA, VULGO LAMPIÃO.

Sinhozinho começou a caminhar para lá e para cá dentro de casa com o bilhete na mão e olhou pra mim. Ele me disse que poderia arrumar o dinheiro no final da tarde e que iria mandar um de seus empregados em uma carroça nas carreiras levar tudo e que dissesse ao capitão que não se avexasse, pois era muito dinheiro e também ele estava sem armamento em sua loja.

Voltei para o povoado, o grupo estava nervoso. Dessa vez fui reconhecido e não atiraram em mim. Mas, por não trazer o dinheiro, Lampião mandou me segurar e arrancou uma rama cipó caboclo que estava enramado numa moita, no mato perto e me deram mais de vinte varadas. Fiquei quase sem o couro das costas, mas não chorei. Eu sabia que ele ia me querer no bando, eu sabia. Quando a surra acabou, Lampião chegou perto e me disse.

- Vá se lavá, se tá cum fome coma tripa assada qui nóis fêz cum farinha. Se alimente, ocê vai cum nóis mostrando o caminho. Vamos invadi Tabaiana Grande si num chega a incumenda.

- Mais Virgulino, Sinhozin vai trazê, num se avexe.

- Minino insolente, quem já se viu fala assim cum capitão. Disse um dos preto como eu, depois soube que era Zé Baiano, o Pantera Negra.

O sol estava morrendo, a noite se empretecendo e o bando de olho em mim como se eu fosse responsável por alguma coisa que viesse a dar errado. Eu sabia que eles me, sangrariam como um bode, matariam e me salgariam como carne seca se as coisas não chegassem como combinado. Por volta das 18h uma carroça aponta ao longe, ela vinha pela estrada e a poeira levantava. Eu estava salvo. Tudo chegou como nos conformes, Lampião não invadiu Itabaiana, seguiram seu rumo, para o norte, e eu fui com eles. Me deram uma das armas, a menorzinha, um chapéu de couro sobressalente que um deles carregava e mandaram que o jovem carroceiro desapeasse o cavalo da e me deram ele. Eu montei com a felicidade de um moleque que pega na teta de uma donzela pela primeira vez. Depois de alguns dias, ganhei a confiança do Capitão, fui aos poucos me tornando um cangaceiro afamado. Todos me conheciam pelo apelido Cavalo do Cão, mas como eu era de poucos amigos, acabei sendo esquecido de minha terra natal.

(...)

Cinco anos depois, já nos sertões da Bahia, estávamos sendo perseguidos por uma volante bem armada. Trocamos tiros e eu estava com um mal pressentimento. Olhei para os lados e não vi mais o bando, o silêncio tomou conta do ambiente. Olhei pra frente e uma figura estranha aparece do nada. Era um homem, todo de preto, roupa rasgada, cara lisa, olhos azuis e pele branca como leite. Causava arrepios. Ele veio em minha direção e me diz.

- Sou o Diabo, vim pegar sua alma. No dia que você entrou para o cangaço selou um pacto comigo, seu corpo sempre foi fechado, nunca soube por que? Mas, você me esqueceu, não merece mais ficar vivo.

- Num querdito nessas coisa do Tinhoso, sô crente no meu Santantônho e ele vai mi protege.

- Quem decidiu foi você, agora morra.

Acordei do transe e recebi uma rajada de tiros no braço, a dor do osso sendo atravessado pela bala quente me fez perder o oxigênio do corpo. Rodei, caí de costas para o chão, senti que se aproximavam algumas pessoas. Rezei para que fossem meus amigos. Vi que não tinha amigos mais. Os soldados me esfaquearam, retiraram minhas vestes, dividiram entre eles. Comemoravam assim como fazia o pescador quando pegava a carpa premiada. Era uma verdadeira caça. 

Hoje é nada menos que o dia que arrancaram minha cabeça fora com um facão de quase meio metro. Antes, jogaram meu corpo já desfalecido no chão duro e cheio de espinhos. Meu braço esquerdo cravado de balas, meu pulmão esfaqueado e quase todo o sangue já havia saído de meu corpo. Fui arrastado por mais ou menos cinquenta metros pelas pernas, cada risada de um macaco me dava ódio, mas eu estava imóvel. Olhava através de um único olho que me restava, mal dava para ser aberto de tão inchado que se encontrava, mas eu procurava atentamente uma chance de escapar daquele calvário. Ninguém voltou para me socorrer, eu não escaparia. O facão corta o ar, atinge o chão, minha cabeça se separa do corpo. Eu morri.

Robério Santos

Membro da Academia Itabaianense de Letras

Fonte: facebook
Página: Robério Santos‎ Lampião, Cangaço e Nordeste

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