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domingo, 25 de maio de 2014

Fogo da Lagoa do Lino... O lamento.

Por Rubens Antonio

Depoimento de Elisia Sampaio Moreira, da Lagoa do Lino, a “Zi do Bó”, residente em Quixabeira:
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O meu pai chamava-se Raimundo Moreira de Oliveira. Ele era chamado "Raimundo, de Cirila", porque era filho de Cyrilla Moreira de Jesus, minha avó... Apesar do tempo passado, eu nem sei se devia contar estas poucas coisas... Penso aqui que não devia falar muito, porque o meu pai sempre evitava falar dessas coisas para mim, desde quando eu era criança, e, depois, para as minhas filhas... Para você ter uma noção, ele sempre teve preocupação de que algo pudesse voltar a acontecer... Aquilo tudo, quando aconteceu, eu ainda não era viva, pois meu pai casou velho, mas eu cheguei a viver na casa do jeito que era como quando tudo aconteceu... Não era de taipa... Como sede da fazenda era de tijolos de adobe e um pouco de barro prensado sobre aquelas estruturas de madeira. O chão era chapado batido de barro mesmo... Como se fazia. Apenas se roçava e se batia. A fazenda, como eu nasci e cresci, sempre se chamou "Lagoa do Lino"...
Não sei de Lino que morou lá, mas tinha uma lagoa lá na baixada e outra um pouco mais adiante... Passava umas seis tarefas... Acho que o nome é por causa da lagoa que ficava mais perto, mas não tenho certeza...
Esse Lino, o meu pai chegou a dizer pra mim que não sabia quem tinha sido. Mas, se a lagoa era dele, significa que terra era dele e a gente pensava ser um antigo dono, que meu pai não conheceu.
Isso de chamarem "Lagoa do Limo" é coisa do povo. Sei não de onde surgiu isso.


A casa da sede, em que eu nasci e vivi, não era onde está agora. Se vocês olharem aquela parte cimentada na frente da casa... Ali era onde ficava a antiga casa... Quando a situação melhorou um pouco, o chão da casa foi cimentado... É isso que a gente vê ali, como área cimentada na frente da porta atual. Então, aquela casa está onde era o fundo da nossa casa.

Raimundo Moreira de Oliveira

Então, veio toda aquela violência que traumatizou meu pai... Não digo que foram os cangaceiros... Isto porque aqueles que pinicaram ele queriam que entregassem o esconderijo dos cangaceiros... Se era para entregar o esconderijo, como eram outros cangaceiros? Mas não passa na cabeça como a polícia fez aquilo com um homem bom, trabalhador, simples, quieto no canto dele. Foram uns homens que ele disse que chegaram. Se o meu pai disse que não dava pra saber se eram mesmo da polícia. Só me disse que eram esquisitos e maus. E ele foi pego. Amarrado. Bateram nele. Deram tapas. Deram socos. E ele foi muito pinicado. Foi todo todo pinicado com uma arma parecida com uma faca, mas ele disse que era mais bonita... Assim, com rodelas de ouro e de prata, no cabo... Era a única coisa que ele conseguia ver e pensar pra tirar a mente daquilo. E ele sempre temeu mesmo falar disto, mesmo depois de velho... Fizeram uma roda em torno dele e feriram assim... Era meu pai... As costas dele ficaram horrorosas. Parece que foi a pior parte. Só vendo... Eram tudo marcado de pinicada... Aqueles homens não tiveram dó. Cravaram faca e canivete... Tudo que fosse coisa de ponta usaram no meu pai.
Eles diziam.
– Você sabe onde eles estão!
– Não sei não! Nem sei do que vocês tão falando!
– Tava fazendo o quê, então?
– Só quero ir embora daqui preparar minha farinha!
– Ou entrega ou vamos ficar aqui muito tempo! Vamos oito dias. E você vai ter que abrir pra gente. E vai ter que manter a gente. Vai ter de cozinhar e a gente vai acabar com tudo seu!
Eles, finalmente, parece que cansaram. Não tinha mesmo como saber nada do meu pai... Estavam mais pra ir embora. Aí, encontram a Maria Velha... Alguns chamam Nega Velha, mas que eu conhecia como Maria Velha.
Foi ela quem levou eles até lá.
Sei que teve um tiroteio horrível... E, depois que tudo acabou, e aqueles que maltrataram meu pai foram embora, aconteceu mais uma coisa. Minha mãe disse que ainda passou um aqui. Quem viu e disse a ela foi a minha vó Cyrilla. Ela só não soube dizer se era cangaceiro que escapou ou se era da polícia também... Estava sozinho e armado. Roubou um cavalo que tinha aqui, do meu pai, e partiu em disparada... A minha vó Cyrilla, é claro, não podia fazer nada.

Seu Raimundo, Zi e dona Antonia

Meu pai contou tudo mesmo foi para a minha mãe, Antonia Moreira de Oliveira... Eu fui sabendo aos pouquinhos as coisas... Mas ele mandava eu deixar pra lá que era um assunto ruim que ele queria esquecer.
Ele mesmo, dificilmente eu via sem uma camisa. Só muito rápido... quando estava trocando... Então eu podia ver as marcas... Como fizeram mal ao meu pai...
Ele nasceu em Mairi, em 5 de março de 1909, e morreu em 7 de abril de 1997.
A minha vó, que também sofreu com a passagem dos cangaceiros, nunca quis falar sobre isso... Não sei se fizeram mal a ela mesma... Porque, se no meu pai eu via, nela era pior ainda de ver... E ela apenas dizia pra eu deixar pra lá, que era assunto ruim... Muito ruim mesmo... Minha mãe, que ela bem menina na época, nasceu em 1910  ainda não casada, não quis contar também o que sofreu com o pessoal dela... Ela morreu em 22 de junho de 2008...
Estão os dois sepultados no cemitério da povoação de Maracujá...
É isto o que contei e não sei se devia ter contato... mas, um dia, todo mundo se vai... Minhas filhas acham que não tem problema e é até melhor eu contar... E, agora, já contei mesmo. Fica o que foi como foi.


Rubens Antonio é Mestre em Geologia, Artes Plásticas e História, Historiador Natural, com aspectos também de Filósofo Natural. Ministrou aulas, na Universidade Estadual da Bahia -UNEB de: - Antropologia - Epistemologia - Metodologia do Trabalho Científico - Ensino de História - Elementos de Geologia - Paleontologia - Sedimentologia - História da Ciência * email: historiageologica@gmail.com. É também pesquisador do cangaço.

http://cangaconabahia.blogspot.com.br

http://blogdomendesemendes.blogspot.com 

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