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sábado, 24 de maio de 2014

O HISTORIADOR E A VERDADE HISTÓRICA

Por Rangel Alves da Costa*

Há um problema sério - e de difícil resolução - na relação entre o historiador e a História. Assim ocorre porque os historiadores se diferenciam perante o modo como abordam o fato histórico. E infelizmente, no afã de se tornarem os donos da verdade, muitos estudiosos subjugam os próprios fundamentos da História para transformar uma dada realidade naquilo que desejam impor como verdade incontestável, absoluta.

Sem rodeios, necessário que se diga que chega ser absurda a apropriação, ou usurpação, que muito historiador faz de determinados fatos históricos. Mas não que tenha pesquisado, confrontado fontes, estudado a fundo o problema, mas simplesmente porque acha que o seu entendimento é o correto. E está acabado. Assim, pretende se tornar o dono da verdade e, na maioria das vezes, negando qualquer validade às conclusões de outros estudiosos.

Veio-me a ideia de abordar esse tema porque recebi a visita de um historiador, professor universitário, com alguns livros publicados e cuja linha de pesquisa envolve, dentre outras abordagens nordestinas, o cangaço e o messianismo. Conversando sobre uma coisa e outra, espantei-me diante de sua verve contestatória daquilo que já foi escrito, negando as abordagens feitas pelos pesquisadores, sempre acentuando que não foi assim, que é mentirosa tal versão escrita.

Só restou dizer que somente ele sabe de tudo, que é o dono da verdade histórica. Mas nem precisava fazê-lo. Evitando alongar desnecessariamente a conversa e dar ao proseado um contorno mais acirrado, simplesmente afirmei que mesmo aqueles fatos históricos tidos como mais importantes são constantemente revistos, reescritos e trazendo novas conclusões e, por isso mesmo, aquilo um dia escrito como verdade absoluta pode depois perder tal caráter. Ademais, assim acontece em todos os campos do conhecimento, onde as novas pesquisas têm o dom de refutar as investigações anteriores.


Então, ele me dizia ser possuidor de dados e informações que negam o que foi escrito como verdade. No momento recordei o que meu pai Alcino Alves Costa havia escrito na introdução do seu livro “Lampião Além da Versão - Mentiras e Mistérios de Angico”, tratando exatamente das dificuldades de se obter informações seguras mesmo diante daqueles que tiveram envolvimento com o fato pesquisado. Eis o que escreveu:


“Que tristeza sente o pesquisador quando, todo cheio de esperanças, encontra e conversa com os que participaram dessa odisséia e, decepcionado, vê que cada um dos que presenciou pessoalmente os acontecimentos se conflita e, com uma versão penosamente diferente, conta a sua própria história. Os historiadores, coitados, se perdem nesse emaranhado de contradições”.

Alcino se refere aos próprios envolvidos nos acontecimentos históricos e que, quase sempre tentando direcionar os fatos a seu favor ou porque procuram esquecer ou esconder determinados acontecimentos, acabam distorcendo a realidade. E se os próprios personagens se controvertem diante dos fatos, que se imagine o labirinto em que os pesquisadores enveredam para retratar os acontecimentos com a mais fidelidade possível. E ainda assim não conseguem, pois de repente surge um pretenso suprassumo do conhecimento se arvorando de ser o dono da verdade histórica, como ocorre com o historiador inicialmente citado.

Na História, a verdade acaba com o próprio acontecimento, com o seu desfecho. Após isso, mesmo ainda no calor dos acontecimentos, impossível a descrição fidedigna e a contextualização absolutamente verdadeira do fato. Elementos são acrescentados, outros esquecidos ou não citados, e ainda outros que chegam para florear e permitir grandiosidade ao feito. E a cada novo escrito sobre o mesmo fato novas nuances surgirão, tanto para negar ou que foi descrito ou para acrescentar situações ainda desconhecidas. Dessa maneira a história vai ganhando percursos os mais diversos e diferentes possíveis, tornando-se até mesmo como algo que, de tanto ser manipulado e transformado, pode ser tido como pura inventividade.

A cangaceira Sila esposa do cangaceiro Zé Sereno

Desse modo, que me desculpe o nobre amigo escritor e historiador, creio ser um exercício de arrogância e presunção alguém querer se apresentar como o dono da verdade dos fatos e acontecimentos passados. E não adianta dizer que tem testemunhos que comprovam os fatos de forma totalmente diferentes, vez que até mesmo Sila, falecida ex-cangaceira e companheira de Zé Sereno, prestou diversos depoimentos completamente contraditórios.

O cangaceiro Zé Sereno esposo da Sila

Assim como na vida pessoal e social, a humildade deve ser também uma característica sempre presente no ofício do historiador. Que imagine que os escritos e as pesquisas dos demais historiadores não estão completos como deveriam, mas não simplesmente afirmando que tal descrição é mentirosa ou fantasiosa. Ademais, não basta afirmar, é preciso provar. E é preciso que traga ao conhecimento da sociedade sua irrefutável verdade histórica, algo que verdadeiramente duvido.

Poeta e cronista

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