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quarta-feira, 30 de agosto de 2017

DESMUNDO

*Rangel Alves da Costa

No mundo do Desmundo, o mundo existente só tem razão de ser quando o seu povo já perdeu o poder de contradizer ou contestar o que está revirado de pés à cabeça. Chega um tempo em que a sociedade se torna tão alienada, tão submissa e escravizada perante determinadas situações, que nem o fogo queima mais a pele nem a ponta de espinho fere mais o pé. O que doer na alma se esta moldada à aceitação do sofrimento?
É que o povo cria mundos estapafúrdios e vai se acostumando com o extravagante, com o grotesco, até com a incoerência e a irracionalidade. Quando não é um mundo criado pelo próprio povo, o mesmo passa a ocorrer pela aceitação ou pela assimilação. Significa dizer que de repente aquilo que seria absurdo perante outros mundos e outras realidades, afeiçoa-se ao cotidiano, ao dia a dia de aceitação e de subserviência ou que foi concebido com validade ou simplesmente imposto.
Desmundo, pois, é o mundo desse mundo já chegado ao fim pela perda absoluta de reconhecer-se em seus valores ou de buscar na anormalidade sua normalidade. Desmundo é fim de mundo, mas um estágio final perceptível apenas pelos que estão de fora ou ainda não foram inseridos naquela realidade. Eis que dentro desse mundo revirado, tosco, às avessas, os sofrimentos são como suspiros de amor e as dores da alma são apenas prazeres predestinações. Talvez algo parecido com um país que sequer se reconhece mais.
Quando Maurício Babilonia apareceu e foi logo de porta adentro, trazendo um buquê de flores para Meme, e atrás de si um bando de borboletas revoava em manto, ninguém disse nada, pois tudo tido como normal. Quando a bela Remedios subiu aos céus num sorriso satisfeito como se viva estivesse, ninguém disse nada, pois tudo tido como normal. Nada de anormal parecia acontecer em Macondo durante os Cem Anos de Solidão.
O anormal ou o avesso em tudo, sempre será visto como normal onde o seu povo assimila tal realidade. Não há espanto nem surpresa se o mundo revirado pareça estar na posição mais correta. Assombro causará se outra forma de repente surgir para dizer que não é assim, que tudo está errado, que tudo tem de ser diferente. É como se os valores reencontrados já não servissem perante os conceitos perdidos.
Quando a cidadezinha de Manarairema passa a ser acometida por estranhíssimos acontecimentos, como a repentina chegada de homens amedrontadores e carrancudos pelos arredores, mas principalmente quando um monte de cachorros e bois invade a cidade e não quer convívio pacífico com ninguém, o espanto de primeiro momento foi dando lugar à aceitação. Sabia que não podiam fazer nada, pois fazendo parte das surpreendentes coisas da vida. Depois, tanto os carrancudos como a matilha foi embora e tudo pareceu ter voltado à normalidade. Mas aquele mundo criado por José J. Veiga em A Hora dos Ruminantes já não era o mesmo.
Tudo surpreende no realismo fantástico de Gabriel Garcia Márquez e de José J. Veiga, mas nada surpreende ao mundo criado. Nada parece assustar, nada parece assombrar, nada parece amedrontar. Quando os mortos ressurgem em Antares, na obra Érico Veríssimo, é como se aqueles fantasmas apenas tomassem o lugar dos apáticos da sociedade, dos vivos omissos e negligentes com a situação política e social de então. Surpreende ao leitor, mas não ao contexto ficcional.
Ora, normal que um cachorro seja um ser social e um homem apenas um bicho que late e ruge. Normal que um filho saudoso do pai vá ao mundo dos mortos enquanto o falecido faz o caminho inverso e no desencontro nada mais possa ser feito, ficando um no lugar do outro. Normal que a moça só seja ouvida e compreendida em silêncio, pois se abre a boca e fala ninguém entende nada. Normal que o cego ensine aos de luz no olhar as cores do arco-íris, vez que estar de olhos abertos não significa a percepção de nada. Tudo normal.
Entretanto, se patriarca dos Buendía ouvisse que existe um mundo real onde tudo é diferente, logo diria: Desmundo! E na sua exclamação o desconhecimento de que pudesse existir um mundo tão distanciado daquele de Meme, de Mauricio, de Amarante, da bela Remedios, dele próprio, José Arcadio Buendía. Mas um mundo de Maria, de Tonho, de Zé, de Zefinha, de Bastião, de Lúcia, de Minervina. E todos vivendo acorrentados e constantemente ameaçados por feras da pior espécie: a fera da política, a fera do poder, a fera do mandato, a fera do autoritarismo, a fera do mando.
“Ah, então aqui é o paraíso!”, diria o transtornado senhor de Macondo. Realmente, em comparação a Desmundo, eis que Macondo parece mesmo um paraíso. Lá, naquela fantasia atabalhoadamente cativante, apenas normalidades avessas, porém sem serem tão vergonhosas, estapafúrdias e repugnantes, como a desse Desmundo afeiçoado a país. Sim, um país que chegou ao seu desmundo na mais melancólica realidade.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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