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domingo, 10 de setembro de 2017

A VERDADEIRA CEGUEIRA DE LAMPIÃO

Rangel Alves da Costa*

A representação visual de Virgulino Ferreira da Silva se acentua no seu óculo de armação arredondada e no seu olho direito meio fechado. Em desenho, pintura ou fotografia, a confirmação maior vem de tais aspectos. Igualmente a John Lennon, não há que se falar no líder cangaceiro sem se ter em mente o rosto triangular adornado pela famosa armação. E também pelo olho semicerrado.

Se Lampião era completamente cego ou apenas de pouca visão no olho direito, de pouca valia terá na sua outra cegueira, aquela que tantas vezes se fez tão verdadeira que talvez ele não tenha conseguido enxergar nem dentro de si mesmo. E foi esta que colocou em dúvida sua qualidade de líder, de indiscutível comandante.

Ora, cegueira não significa apenas um distúrbio na visão, uma perda total ou parcial da capacidade de avistar, mas também o não querer enxergar aquilo que está adiante, não só dos olhos como da percepção. E em muitas situações era esse tipo de cegueira, a pessoal, que mais afligiu Lampião, conscientemente ou não.


Verdade é que muitas vezes, diante de muitos fatos e acontecimentos, Lampião se mostrou completamente cego perante a realidade. O problema no olho não o impedia de divisar sombras escondidas na mataria, não dificultava seu alvo certeiro, não causava nenhum problema nos momentos mais precisados. Mas a sua outra cegueira sim.
E por que a outra cegueira? Considerando-se, de modo figurado, que cegueira é também distúrbio da razão, falta de discernimento, falsa percepção da realidade, obcecação, falta de lucidez ou de capacidade de raciocinar, logo se tem que Lampião se mostrou completamente cego. E cego, por exemplo, quando confiou demais na sua fama, na rede de proteção que havia firmado e na descrença perante aqueles que o alertavam para os perigos rondando os coitos e as veredas.

Mas nada disso causa estranheza diante de outras demonstrações de absoluta escuridão íntima, pessoal, confrontando mesmo todo aquele arcabouço consciente, intelectivo e estratégico do guia maior dos cangaceiros. É de causar verdadeiro espanto quando o grande estrategista, o astuto catingueiro, o sábio da luta, de repente comece a agir como se nenhuma valia desse mais ao seu mando, ao código de conduta imposto, ao que considerava de essencialidade para a luta e sobrevivência do cangaço.

Mas vamos aos fatos. Mas antes disso respondam: Lampião era homem de duas faces, de duas caras como se diz por aí, ou era cabra de palavra, que exigia respeito, ordem e obediência? Mais uma pergunta: Será que Lampião passava uma imagem exterior de uma forma e no âmbito familiar cangaceiro, perante o seu bando, agia de modo totalmente diferente e a ponto de perder força de comando?

Prefiro acreditar no homem de pulso, severo diante de erros, no verdadeiro líder. Prefiro continuar acreditando no homem que jamais se desnorteou das linhas do destino traçadas em sua mão. Contudo, também não posso deixar de afirmar sobre o irreconhecível Lampião diante de tantas façanhas macabras recontadas pelos historiadores e pesquisadores. Somente na mais completa cegueira pessoal o líder maior aceitou que verdadeiros absurdos acontecessem.

As atrocidades de Zé Baiano, o Carrasco Ferrador, contra aquelas mocinhas de Canindé, ocasião em que as três faces sertanejas foram impiedosamente marcadas com ferro em brasa. A torpeza e a traição praticadas contra a cangaceira Rosinha, covardemente morta pelos próprios companheiros de bando - e dizem até que a mando do próprio líder. As mortes de inocentes durante os ataques empreendidos pelo bando nas povoações interioranas. E sem desprezar os relatos dando conta das sanhas bestiais da cangaceirama e de suas ações de violências ilimitadas contra o pobre homem da terra, tudo isso demonstra que talvez os dois olhos de Lampião estivessem fechados. Ou completamente cegos, mas pela outra cegueira.


E verdadeiramente cego porque inadmissível que o homem que pregava uma guerra justa permitisse que seus comandados fizessem qualquer um de inimigo, principalmente quando se tratava de desvalidos da terra. Absolutamente cego porque não se admite que um líder, ainda que não esteja presente em todas as ações dos seus, não os tenha alertado sobre as consequências das violências extremadas e dos atos impensados. Cegueira total em Lampião ao saber que seria responsabilizado por toda maldade praticada pelos seus cabras e ainda assim permitiu que tudo perdesse o controle em muitas situações.

Por isso mesmo que a cegueira do olhar é um quase nada diante da cegueira humana, da perda de clareza na sua ação. O seu olho afetado - e apenas um - não o impedia de enxergar claramente as ações de seus comandados. Como condutor máximo, absoluto, ou foi convivente com as atitudes tomadas ou simplesmente foi aceitando, assim como uma bola de neve ou de espinho. E ao agir assim, ferindo a visão de sua própria consciência, logo se mostrou completamente cego.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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