*Rangel Alves da Costa
A porta se fechava e se abria a todo instante. A janela, apenas recostada, chegava a dançar com a força do vento. Panela de barro por cima do fogão de lenha, uma frigideira esperando sua vez, num varal de arame toucinho de porco, bucho e tripa.
Um tempo de desalento, de paisagens tristes, mas ainda assim as mais belas que podiam existir. O sertão e sua feição de esperança e desolação, de fartura no olhar e tristeza pelo tão pouco ter. Mas o homem não vive somente de posses, principalmente se tem o poder de ser feliz na vida que tem.
Um grito pela sobrevivência. Nada além do necessário à sobrevivência. Vintém da feira contado, quilo de comida contado, pedaço de pano contado, tudo contado, até mesmo a cachaça com raiz de pau tomada ao pé de balcão. Nunca havia o prazer de possuir além do permitido à sobrevivência.
Carne pouca, seca, mas tinha um tiquinho ali estendida. Perto do meio dia ou mesmo antes da boca da noite, bastava ir até lá com a faca afiada e cortar a porção do de comer. Coisa boa quando tinha feijão de corda. Fazer com a mão o bolo de feijão com farinha e depois passar no caldo apimentado na tigelinha ao lado, não havia maior gostosura. E se fosse carne de bode então.
Mas às vezes o contentamento era com o que restava na despensa ou pelos cantos da cozinha. Um cuscuz ralado se o tempo dava de ter milho, inhame, batata ou macaxeira. Ou apenas farinha seca com perna de preá. Tudo mata a fome, dizia a senhora dona da casa. A verdade é que ninguém rejeitava a farinha seca com toucinho ou mesmo na farofa com tripa e ovos de galinha de capoeira.
A xícara de café ao lado, a fome tanta para tão pouco. Mas assim se vivia. Na sede, a quartinha perto da janela, o pote por riba da trempe, a caneca ariada com folha de velame e terra grossa. Ficava num brilho só. Um viver assim, dia após dias, criar os meninos, entregar ao mundo o espelho dos pais.
Colher aquilo que foi possível brotar na inconstância da terra. Se o inverno foi bom, então uma melancia, uma abóbora, uma mão de feijão, um punhado de milho. Somente com raridade o feijão colhido era espalhado defronte da casa para secar. Guardar um tanto para o dia a dia e o outro tanto vender para ajudar no que fosse necessário.
Café torrado no tacho e batido em pilão, depois peneirado e pronto para o uso ao amanhecer e anoitecer. Banha de porco juntada em lata pequena de alumínio. Não havia comida melhor do que aquela preparada na banha de porco. Pimenta da forte avermelhada em garrafa. Tem gente que não come sem uma pimentinha.
O vento soprando pelo varal e as poucas roupas querendo voar. Folhagens secas chegando e se espalhando pelos cantos de barro. Folha seca e homem num só destino de outono. O viço e o verdor apenas na força e na vontade de sobrevivência. Um ânimo tão alentador que torna em esquecimento todo o sofrimento.
O chapéu de couro pendurado no armador de rede. O roló esperando ser calçado a qualquer. Os apetrechos de montaria e de trabalho na terra também juntados num canto. Uma velha espingarda de jogar espoleta em caça miúda. Tudo fazia para evitar caçar preá, nambu, codorna e todo bicho de mataria, mas não havia jeito quando a fome apertava.
Assim um viver nos tempos idos. Na pobreza e na riqueza maior da paz. O sol queimava, mas a lua descia molhando tudo. Quando o poleiro silenciava, já quase hora também de fechar a porta. A noite fechada nunca encontrava uma porta sertaneja totalmente aberta. Dormia-se cedo para que o galo não tivesse o prazer de ser o primeiro. Ainda na madrugada, então a lenha espalhada no fogão. Depois da prece, do avistamento da cor da barra, o novo dia que nascia naquele sertão antigo.
E o que resta hoje? Apenas uma casinha. Uma casinha em escombros, despencando aos pedaços. O retrato de um passado e de uma vida inteira no que ainda resta na estaca, no cipó e no barro. No dia e dia assim, apenas o silêncio e a solidão na moldura do tempo.
Escritor
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