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domingo, 5 de maio de 2019

ADRIANA NEGREIROS: “MARIA BONITA FOI UMA MULHER EMPODERADA”


A escritora Adriana Negreiros (Crédito: Marcos Vilas Boas).

A autora da biografia da cangaceira Maria Bonita conta como realizou a pesquisa para o livro – e o que ela descobriu

Luiz Antonio Giron

Paladina dos pobres, amazona dos sertões, bandoleira ou precursora do feminismo? São variadas e contraditórias as versões de Maria Bonita (1910-1938), a companheira do capituão Virgulino, ou Lampião, o Rei do Cangaço. Para fornecer um retrato mais fiel e desvendar os mistérios em torno de Maria Bonita, a jornalista paulistana Adriana Negreiros dedicou-se a pesquisar sobre o tema. O resultado é o livro “Maria Bonita – Sexo, violência e mulheres no cangaço”, lançamento da Companhia das Letras. Trata-se de seu primeiro livro. Ele é importante porque evidencia o papel das mulheres na bandidagem rural nordestina dos anos 1930, no qual Maria de Déa, ou Maria Gomes de Oliveira se destacou. É a trajetória de Maria (que não foi chamada de Maria Bonita em vida) que fornece a estrutura do livro, pois foi ela a primeira mulher a entrar no cangaço, ao se juntar ao bando do marido Lampião, em janeiro de 1930.

Nesta entrevista, Adriana conta como realizou a pesquisa e por que Maria foi uma espécie de precursora da liberdade feminina.

Por que você se dedicou a pesquisar o papel da mulher no cangaço? 

Havia uma lacuna nos estudos da área nesse aspecto? Os historiadores do cangaço costumam mitificar as mulheres?

Sempre fui fascinada pela história do cangaço – minha família é da cidade de Mossoró (RN) e cresci ouvindo minha avó contar histórias de cangaceiros. Quando escolhi o tema para meu primeiro livro, motivada por esse fascínio, decidi que deveria conta-lo a partir da perspectiva de Maria Bonita, e não de Lampião. A história costuma ser contada pelo ponto de vista do homem (branco e ocidental) e a decisão de adotar como fio condutor uma personagem feminina foi, também, um ato político.

Na universidade, há excelentes estudos sobre a participação das mulheres no cangaço. Mas, nas livrarias, são raros os livros a respeito do tema. Geralmente, quem escreve sobre o cangaço escolhe como personagem central a figura de Lampião.

Os melhores historiadores que estudaram o cangaço estão longe de mitificar as bandoleiras – Frederico Pernambucano de Mello, Luiz Bernardo Pericás e Elise Grunspan-Jasmin já demonstraram, em seus livros, como se dava a relação de opressão contra as mulheres no interior do bando. Porém, a literatura de cordel, alguns relatos memorialísticos e, sobretudo, a indústria cultura criaram a imagem da cangaceira como uma valentona, uma matadora, uma justiceira voraz. Nada mais equivocado.

Com que tipo de fonte e documentos você trabalhou? Conseguiu algum depoimento direto ou usou testemunhos deixados pelos cangaceiros?

Jornais e revistas de época, livros, testemunhos deixados pelos cangaceiros e entrevistas com descendentes.

A situação oprimida das mulheres, e de Maria Bonita, já era conhecida por meio de outras pesquisas sobre o tema? Em que aspecto o seu livro traz novidades?

Os melhores livros sobre o cangaço, como os dos já citados historiadores, deixam claro que as mulheres viviam sob a égide da opressão. Acredito que meu livro contribua para o debate e para os estudos sobre o cangaço por seu enfoque: as mulheres são o assunto principal do meu trabalho. A história é contada pelo ponto de vista delas, e seus relatos não são relativizados. Narro, com o máximo de detalhes que pude levantar, como se deram as experiências de violência contra as cangaceiras. Examino essa história dos anos 30 com o olhar de uma mulher de 2018 e faço uma pergunta que, penso, ainda não havia sido feita: por que os relatos dessas mulheres têm sido costumeiramente desacreditados? Por que, quando as cangaceiras contaram sobre suas entradas no bando – muitas delas, raptadas e estupradas quando crianças – foram tidas por mentirosas, exageradas e dramáticas? Concluí que se trata da mesma lógica que, até hoje, insiste em transformar vítimas em culpadas. Uma distorção atávica.

Maria Gomes de Oliveira a Maria Bonita (Crédito:Benjamin Abrahão) Benjamin Abrahão

Como se criou o mito da Maria Bonita como uma Joana D’arc? Você pode descrever como era a mulher real? Era realmente chata, como diz Dadá? Agira como primeira-dama?

O mito começou a ser criado pela lacuna de informações sobre Maria. Os jornais da época davam pouca importância às cangaceiras. Estavam mais interessados em Lampião, Corisco e outras celebridades masculinas do banditismo rural. As raras informações publicadas sobre as mulheres, inclusive Maria, vinham quase sempre das fontes oficiais, ou seja, da polícia, que tratava as cangaceiras como bandidas – embora elas não atirassem, não participassem dos combates e nem dos saques. A despeito de não serem criminosas, eram presas e, muitas delas, mortas e decapitadas. Para justificar esses atos bárbaros, o melhor para a repressão era incutir nelas a imagem de matadoras, cruéis e sanguinárias.

Esse retrato foi perpetuado pela TV e pelo cinema, mas com uma roupagem romântica, como convém à indústria do entretenimento. Assim, as cangaceiras, Maria Bonita em especial, foram ganhando ares de heroínas, justiceiras, sertanejas revolucionárias.

Maria agia, sim, como primeira-dama, razão pela qual era tida como chata por Dadá. Quem participava da intimidade do grupo, ainda que por alguns dias, destacava que Maria trabalhava bem menos do que as outras bandoleiras. Também tinha influência sobre as decisões de Lampião, para desgosto de Corisco, que dizia que “homem governado por mulher não dá certo”. Zombeteira, caçoava das colegas por darem duro na labuta e ria alto, de forma escandalosa, eventualmente fazendo troça das características físicas de Lampião, como suas pernas finas. Era uma mulher bem-humorada.

Você dá a Maria Bonita o status de ter sido a primeira mulher a acompanhar os cangaceiros. Neste ponto, ela foi pioneira da liberação feminina?

Maria foi uma transgressora. Em pleno sertão do nordeste dos anos 30, largou o marido, com quem era infeliz, para acompanhar o fora-da-lei mais procurado do Brasil. O esperado de uma mulher insatisfeita com o esposo mulherengo era que se conformasse com a situação (e não nos esqueçamos que o Código Civil em vigor na época, de 1916, determinava que as mulheres deveriam ter autorização do marido para trabalhar e dava aos homens o direito de anular o casamento caso descobrissem que sua senhora não era virgem). Nesse aspecto, Maria Bonita foi uma mulher “empoderada”.

Ao mesmo tempo, Maria Bonita era conivente com os estupros coletivos que o bando de seu marido empreendia nos assaltos pelo sertão. Eram duas faces contraditórias da mesma mulher?

Maria era dona de si, não dava muita bola para o que diziam dela – a ponto de, mesmo casada, frequentar os forrós e, ao que tudo indica, ter um amante –, mas não era uma feminista. Não estava preocupada com as questões de gênero – tampouco era adepta do que se viria a ser conhecido como sororidade. Não se opunha às execuções de mulheres por traição. Chegava até a incentivá-las, como aconteceu quando Cristina foi morta por suspeita de trair Português.

Bando de Corisco (Crédito: Benjamin Abrahão) Benjamin Abrahão

Em que consistia o código de conduta do cangaço, com seus interditos e regras rígidas em relação ao sexo?

Havia um código de conduta elaborado a partir de crendices e superstições que desestimulava o sexo em algumas ocasiões: por exemplo, às sextas-feiras e em vésperas de mudanças. Também estabelecia a dedicação ao sexo apenas quando a situação se mostrasse segura – antes da relação, em respeito ao Todo Poderoso, os cangaceiros tiravam os colares com saquinhos nos quais carregavam orações para santos escritas em pequenos pedaços de papel. Desse modo, ficavam desprotegidos, ou com o “corpo aberto”.

Lampião era ele próprio um mitômano, frequentador de cinema e leitor de romances policiais e de aventura. Será que de alguma forma ele não alimentava o mito de Rei do Cangaço e, por isso, vendia a imagem de par romântico de Maria?

Lampião foi um gênio do marketing. Soube construir, em torno de si, a imagem de um rei, um bandido de classe, a ponto de, ainda hoje, ser adorado por muitos sertanejos (não são poucos os que dizem que, fosse ele o presidente da República, o Brasil estaria melhor). Para isso, soube fazer uso da imprensa, que nos anos 20 e 30 começava a tomar forma mais profissional, com jornais e revistas organizados em grandes empresas – em 1926, por exemplo, aceitou dar entrevista a um jornalista do Ceará, ocasião em que tratou o repórter com cortesia. Mas não o classificaria como um mitômano. Lampião era um homem discreto quanto a seus feitos, um sujeito de alguma elegância no trato com aqueles que tinha por seus pares, como coronéis e políticos. Bebia, mas não gostava de ficar bêbado. Tinha autocontrole. Era educado e cumpridor de promessas – fazia questão de ser reconhecido como um homem de palavra. Até na hora de sangrar seus inimigos agia com sofisticação.

Há alguns registros de idas de Lampião ao cinema, mas não se pode dizer que ele fosse um entusiasta da sétima arte – em uma das ocasiões, inclusive, abandonou a sessão na metade porque achou o filme chato (“Ninho de amor”, do diretor Buster Keaton, de 1923). Tampouco acredito que Lampião fosse um leitor voraz de romances policiais e de aventura. Essa versão de um Lampião apreciador de livros policiais foi criada pelo fotógrafo sírio-libanês Benjamin Abraão, segundo a qual o Rei do Cangaço consumia a obra de Georges Simenon e Edgard Wallace. Lampião tinha noções rudimentares de escrita, o que pode ser atestado pelos bilhetes eivados de erros de ortografia que deixaria para a posteridade. A escrita precária, quase incompreensível, não combina com um espírito inclinado à literatura. Embora consumisse o que se publicava a seu respeito, acho improvável que se dedicasse a leituras de maior fôlego.

Também não restam dúvidas de que Lampião foi o Rei do Cangaço. Nunca houve cangaceiro mais poderoso do que ele. E, em vida, seu romance com Maria não foi consideravelmente celebrado. Ela só seria conhecida no final de 1936, pouco antes de sua morte (em julho de 1938), em decorrência do registro de Benjamin Abraão.

Bando de Lampião com Maria Déa em primeiro plano (Crédito:Benjamin Abrahão)Benjamin Abrahão

Em que medida os meios de comunicação da época – jornais, revistas, emissoras de rádio, cinema – ajudaram a espalhar – e a deturpar, às vezes, a fama de Lampião e Maria Bonita?

Lampião foi presença quase diária nos jornais nas décadas de 20 e 30. Embora as matérias dos jornais e das revistas narrassem os feitos do cangaceiro a partir das fontes oficiais, destacando sua crueldade, havia, entre os articulistas, alguns que interpretassem sua figura como a de um mártir dos oprimidos. A partir dali, já se começaria a desenvolver a dupla interpretação que, até hoje, predomina sobre o fenômeno do cangaço – há quem veja nos “cabras” a figura de bandidos e os que, por outro lado, tomem-nos por heróis. Segundo essa última versão, Lampião seria uma espécie de Robin Hood da caatinga.

Quanto ao cinema, o filme da época que chegaria aos dias de hoje seria “Lampião, o Rei do Cangaço”, de Benjamin Abraão, que humanizaria os cangaceiros, apresentando-os em sua rotina mais comezinha. Por meio das imagens captadas por Abraão, descobre-se que os cangaceiros rezam, usam perfume e dançam. Nas cenas, vê-se Lampião e Maria Bonita na intimidade, afetuosos um com o outro. Com o filme, percebe-se que os facínoras também amam, o que tornaria a leitura acerca dos cangaceiros bastante difícil para os que gostam de análises mais chapadas, como se personagens históricos pudessem ser classificados entre aqueles que são “do bem” e os que são “do mal”.

As mulheres do cangaço eram puramente vítima ou de alguma maneira partilhavam os valores de seus homens?

As mulheres eram vítimas de um ambiente extremamente machista e opressor que as colocavam umas contra as outras. Nesse ambiente, reproduziam os valores de seus homens, não se reconhecendo como oprimidas e naturalizando a violência da qual eram vítimas. Não à toa, muitas consideravam que suas colegas, ao ser punidas com a morte por adultério, haviam feito por merecer o castigo.

O legado de Maria Bonita como símbolo da mulher destemida, disseminado sobretudo pela literatura de cordel, deve ser descartado? Por quê?

Não. Maria Bonita era, sim, uma mulher destemida. É preciso muita coragem e determinação para decidir acompanhar o bando de Lampião, enfrentando fome, sede e a perseguição policial em nome de amor e aventura.

Você afirma que o apelido de Maria Bonita foi póstumo. Mas os cangaceiros do bando de Lampião costumavam cantar a canção “Acorda, Maria Bonita”, atribuída a Lampião, desde o início dos anos 30. A música precedeu a mulher real?

O hino de guerra dos cangaceiros era a canção “Mulher rendeira”. Ao que tudo indica, a canção “Acorda, Maria Bonita”, de autoria desconhecida, é posterior aos fatos do cangaço. A confusão deve-se ao fato de, em 1957, Antônio dos Santos, nome do cangaceiro Volta Seca, ter gravado um LP intitulado “As cantigas de Lampião”, no qual consta, além de “Mulher rendeira”, “Acorda, Maria Bonita”. No disco, Antônio dos Santos (este, sim, um mitômano de primeira) aparece como autor das canções. Mas, como disse Dadá em uma entrevista de 1970, “Acorda, Maria Bonita” não é de Volta Seca coisa nenhuma (tampouco de Lampião). É “música do povo”, como ela definiu.



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