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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

UMA OUTRA ENTREVISTA DE "LAMPIÃO"



EM 1926, NO JUAZEIRO DO PADRE CÍCERO, LAMPIÃO CONCEDE ENTREVISTA AO JORNAL “A NOITE”, DO RIO DE JANEIRO, QUE TORNA PÚBLICA NA EDIÇÃO DE 19 DE ABRIL DE 1926. A SEGUIR.

UM BANDIDO QUE SE JULGA UM HERÓI
AS PROEZAS DE “LAMPIÃO” DESCRITAS POR ELE PRÓPRIO
FEITIO E CONCEPÇÕES DO CANGACEIRO.


Ainda há pouco dias, a NOITE publicava interessante correspondência da cidade cearense de Juazeiro, noticiando que a população local estava aterrorizada com o fato de ali se haver aboletado, com o seu bando, o famigerado cangaceiro “Lampião”, bandoleiro cujo nome já se tornou conhecido de norte a sul do país, através a narrativa das tropelias de toda a sorte com que em flagelando o Nordeste. Temos, agora, ensejo de estampar uma entrevista obtida do célebre bandido pelo nosso correspondente naquela cidade do Estado do Ceará, bem como várias fotografias do mesmo, umas e outras igualmente interessantes.


Eis a entrevista:

O QUE ELE PENSA DOS JORNALISTAS...

Sabedores de que Lampião se encontrava nas cercanias da cidade de Juazeiro, resolvemos ir entrevista-lo para a NOITE.

Encontramo-lo num velho sobrado, nos arredores da cidade. Estava com todo o seu grupo, que se compunha de 49 homens. Anunciada a nossa qualidade de jornalista e o desejo que tínhamos de ouvi-lo, Lampião solicitamente se prontificou em atendermos, não obstante estar certo, disse, de que os jornalistas costumam por vezes mentir.

O CANGACEIRO... POR FORA

Lampião é um homem ainda moço, e forte, aparentando 27 anos. Caboclo, de estatura regular, é franzino, dando impressão, porém, de grande agilidade de movimentos. Os olhos perscrutadores, tem, contudo, a vista sempre baixa, sobre esta pendendo os seus cabelos negros e estirados. Dir-se-ia tratar-se de um beduíno, pelo todo de sua fisionomia. Na face direita tem um sinal e uma de suas vistas, perdida, está coberta por uma crosta azulada, que lhe toma todo globo ocular.

Quando conversa, Lampião a todo momento cruza as pernas, sobrepondo-as e movendo-se de modo a chamar a atenção.

Usa óculos pretos com aros de ouro, trajando calça e paletó de brim, um uniforme muito talhado. Traz um grande lenço de seda ao pescoço, preso por grosso e largo anel de ouro, relógio e corrente também de ouro com uma libra esterlina pendente, e, ainda, dois anéis, um dos quais de brilhante.

OUVINDO LAMPIÃO

Feita a nossa apresentação, foi-nos posta uma cadeira à cabeceira de uma mesa de jantar, numa sala quase escura. Lampião colocou-se, de pé, ao nosso lado, cercando-nos os seus companheiros.

Entrando, então, a dirigir perguntas ao célebre facínora, ele foi respondendo com o maior desembaraço.

SEU VERDADEIRO NOME E FAMÍLIA A QUE PERTENCE – PORQUE SE TORNOU CANGACEIRO

Assim se expressou Lampião:

- Chamo-me Virgílio Ferreira da Silva e pertenço à humilde família Ferreira, do riacho de São Domingos, município de Vila Bela.

Meu pai, sendo constantemente perseguido pela família Nogueira e por José Saturnino, nossos vizinhos, resolveu retirar-se para o município de Águas Brancas.

Nem por isso cessou a perseguição. Em Águas Brancas foi meu pai, José Ferreira, barbaramente assassinado pelos Nogueira e Saturnino, no ano de 1917. Não confiando na ação da justiça pública, por isto que os assassinos contavam com a escandalosa proteção dos grandes, resolvi fazer justiça por minha conta própria, isto é, vingar a morte do meu progenitor.

Não perdi tempo e resolutamente arrumei-me e enfrentei a luta. Não escolhi gente das famílias inimigas para matar: consegui dizimá-las convenientemente.

UM “GRUPO” A QUE JÁ PERTENCEU

Já pertenci ao “grupo” de Sinhô Pereira, a quem acompanhei durante dois anos.

Muito me afeiçoei a este meu ex-chefe, porque é um leal e valente batalhador; tanto que se ele ainda voltasse ao cangaço, iria ser de muito boa vontade seu comandado.

POR ONDE TEM ANDADO – CONCEITOS SOBRE AS POLÍCIAS DOS ESTADOS

Tenho percorrido os sertões de Pernambuco, Paraíba e Alagoas e uma pequena parte do Ceará.

Com as polícias desses Estados tenho entrado em vários combates. A de Pernambuco é uma polícia valente, que muitos cuidados me têm dado. A da Paraíba, porém, não me merece igual conceito...

PROTETORES

- Não tenho tido, propriamente, protetores. A família Pereira, entretanto, é quem me tem protegido mais ou menos. Todavia, conto por toda parte com bons amigos, que me facilitar tudo e me escondem eficazmente quando me acho muito perseguido pelos governos. Se não tivesse necessidade de procurar meios para a manutenção dos meus companheiros poderia ficar oculto indefinidamente, sem nunca ser descoberto pelas forças que me perseguem.

Dos meus protetores só um me traiu: foi o coronel José Pereira Lima, chefe político de Princesa, a quem, entretanto, prestei, durante anos, os mais vantajosos serviços da minha profissão.

COMO OBTÉM RECURSOS PARA MANTER O SEU PESSOAL

Neste ponto Lampião faz uma pausa. Mas, a uma pergunta nossa, logo prossegue:

- Consigo o necessário para as grandes despesas do meu batalhão pedindo aos ricos e tomando daqueles que, podendo, recusam-se a fornecer-me.

NÃO CONSEGUIU FAZER FORTUNA...

Tudo quanto tenho adquirido na minha vida de bandoleiro mal tem chegado para as despesas com a manutenção do meu pessoal – aquisição de armas e munições, convindo notar que muito tenho despendido também com a distribuição de esmolas aos necessitados.

COMBATES E VÍTIMAS

E continuando:

- Não posso dizer, ao certo, o número de combates em que já estive envolvido. Calculo, porém, que já tomei parte em mais de duzentos. Também não posso informar o número de vítimas que tombaram sob a pontaria adestrada e certeira do meu rifle. Entretanto, lembro-me perfeitamente de que, além dos civis, já matei três oficiais de polícia, sendo um de Pernambuco e dois da Paraíba. Sargento, cabos e soldados, ser-me-ia impossível guardar na memória o número dos que foram mandados para o outro mundo.

COMO TEM LOGRADO ESCAPAR À PERSEGUIÇÃO DOS GOVERNOS

Tenho conseguido escapar à tremenda perseguição que me movem os governos, brigando e correndo, quando vejo que não posso resistir ao ataque. Além disto, sou muito vigilante e confio sempre desconfiando, de modo que, dificilmente me pegarão de corpo aberto. Ainda é de notar que tenho fieis amigos e estou sempre avisado do movimento das forças. Tenho também um excelente serviço de espionagem, dispendioso, mas utilíssimo.

DEPREDAÇÕES

Já tenho cometido violências, é verdade. Isto, porém, em represália a inimigos e alguns incêndios que tenho feito têm sido em propriedades de inimigos que me perseguem.

CRIMES CONTRA A HONRA DAS FAMÍLIAS

Costumo respeitar e acatar as famílias, por mais humildes que sejam. E, se algumas vezes, companheiros meus praticam abusos com famílias, reprovo o ato e até já tenho castigado os que mais se excedem...

NÃO QUER DEIXAR O CANGAÇO...

Outra pausa. Em resposta, porém, a nossa interpelação, o famoso bandoleiro assim fala:

- Até agora não desejei abandonar a vida das armas, com a qual já me acostumei e me sinto bem. Mesmo que assim não sucedesse, não poderia deixá-la, porque os inimigos não se esquecem de mim. E, por isso, eu não posso e nem devo deixá-los tranquilos. Poderia retirar-me para um lugar longínquo, mas julgo que seria uma covardia e não quero nunca passar por covarde.

AMIGO DOS TELEGRAFISTAS, INIMIGO DOS SOLDADOS...

É ainda Lampião quem fala:

- Gosto geralmente de todas as classes. Aprecio, porém, de preferência, as classes conservadoras – agricultores, fazendeiros, comerciantes, etc., por serem os homens do trabalho. Tenho veneração e respeito pelos padres, porque sou católico. Sou amigo dos telegrafistas, porque alguns já me têm tirado de grandes perigos. Acato aos juízes porque são os homens da lei e não atiram em ninguém. Só uma classe eu detesto: é a dos soldados, que são os meus constantes perseguidores.
Reconheço, todavia, que muitas vezes eles me perseguem porque são mandados, e é justamente por isso que ainda poupo alguns, quando os encontro fora da luta.

VALENTIA DE COMPANHEIRO

As demais palavras de Lampião foram estas:

- A meu ver, o cangaceiro mais valente do Nordeste foi Sinhô Pereira. Depois dele Luiz Padre.

Penso que Antonio Silvino foi um covarde, porque se entregou às forças do governo, em consequência de um pequeno ferimento. Eu já recebi ferimentos gravíssimos, e nem por isso me entregarei.

Conheci muito José Ignácio do “Barro”. Era um grande protetor de cangaceiro.

LAMPIÃO... LEGALISTA!

Tive um combate com os revoltosos, entre São Miguel e Alto de Areias. Informado de que eles por ali passavam, e sendo legalista, fui ataca-los, havendo forte tiroteio.

Depois de grande luta e estando apenas com 18 companheiros, vi-me forçado a recuar, deixando diversos dos inimigos feridos.

POR QUE NÃO COMPROMETE O SEU PESSOAL

Desejaria andar sempre acompanhado de numeroso grupo. Se não o organizo, conforme o meu desejo, é porque me faltam recursos materiais para a compra de armamentos e para a manutenção do pessoal. Este que me acompanha atualmente é de 49 homens, bem armados e municiados.

O meu grupo nunca foi, todavia, muito reduzido – tem variado sempre de 15 a 50 homens.

FERIMENTOS E FERIDAS

Já recebi quatro ferimentos graves. Dentre estes um na cabeça e do qual só por milagre escapei. Os meus companheiros também várias vezes têm sido feridos. Possuímos, porém, no nosso grupo pessoal habilitado para tratar dos feridos, de modo que sempre, somos convenientemente tratados.

Por isto, como o senhor vê, estou forte e perfeitamente sadio, sofrendo apenas raras vezes ataques reumáticos.

RESPEITA O CEARÁ

Sempre respeitei e continuo a respeitar o estado do Ceará, porque aqui não tenho inimigos, nunca me fizeram mal, e ainda porque é o Estado do Padre Cícero. Como deve saber, tenho a maior veneração por este sacerdote, porque é o protetor dos humildes e dos infelizes e, sobretudo, porque há muitos anos protege as minhas irmãs que moram nesta cidade. Tem sido para com elas um verdadeiro pai.

Convém dizer que eu ainda não conhecia pessoalmente o Padre Cícero, pois é esta a primeira vez que venho ao Juazeiro.

CADA VEZ MAIS LEGALISTA

Vim agora do Cariri a ver se me incorporo a algum batalhão legalista, para cooperar no combate aos revoltosos...

A NOITE, segunda-feira, 19.04.1926

Imagens:

Virgulino Ferreira da Silva (Lampião), Padre Cícero Romão Batista e fac-símile do jornal "A Noite", com a entrevista.


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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