Por Luiz Serra
Rio de Janeiro, manhã ensolarada, dezembro de 1969, o ônibus para defronte ao antigo Ministério da Guerra, Campo de Santana, indo para a Praça Mauá, centro da cidade. Eu adolescente estava nele seguindo, para assistir a aulas em um curso de Inglês, desde o bairro em que eu residia, sentava-me no segundo banco da direita. O motorista fala com alguém de fora assim que a porta de correr se abre: “Entra, profeta!”
Profeta Gentileza, anos 80... LuLacerda
Assim vejo
entrar uma figura inusitada para mim, parecia familiar aos demais passageiros.
Um senhor de olhos claros, sorridente, de longos cabelos e barba brancas,
vestia uma bata alvíssima, o imaginei um desses beatos, só que em vez de um
cajado segurava uma plaqueta com dizeres em caixilhos pintados, letras
encostadas que não consegui decifrar, parecia escrita do antigo Egito. O
profeta fez gesto de cumprimento aos que estavam atrás no veículo e assentou-se
no primeiro banco. Indagou ao motorista se a família estava bem, que respondeu
sobre a piora do estado de saúde de um filha. O profeta de pronto, com voz
suave e rija, que entendi bem: “Nada haverá de ficar pior do que está, faça o
que é de melhor, dê atenção a ela, que ficará bem!”. Seguiu-se mais um diálogo
não perceptível pelo barulho.
Desfile
da Escola de Samba Grande Rio. liesa.globo
Passou-se uns
dez minutos, chegamos à lateral da Candelária, o profeta se levantou e avisou
para descer. O motorista cuidadosamente encostou o ônibus na parada, e
agradeceu ao bondoso beato pelos conselhos. O velho antes de descer virou-se
para nós, passageiros, e citou o bordão que celebrizou aquele homem simples: “Não
esqueçam de praticar: Gentileza gera gentileza!” – Desse modo conheci o profeta
Gentileza de tantos seguidores e admiradores, dentre eles, a cantora Marisa
Monte veja vídeo: https://www.youtube.com/Marisa Gentileza).
Em seguida,
guardei o comentário imprevisto do motorista sobre o profeta: “Ele ficou assim
depois do incêndio do circo!”
Um senhor
sentado mais ao lado disse mais detalhes da vida do beato urbano Gentileza.
Novas idas ao curso e mais vezes via o profeta pelas calçadas alevantando a
plaqueta, enquanto uns riam outros assustavam-se, tal qual um “doidarrão pio”,
da expressão primeira de Euclides. Anos seguintes, pelos jornais, interessei-me
pela história, passei a conhecer o imprevisto da história de José Datrino, esse
o nome do profeta que, desde menino, repetia “trazer consigo premonições sobre
sua missão na terra”. O tal circo, era o Gran Circus Norte-Americano, fazia
enorme sucesso nos subúrbios. Numa tarde de dezembro de 1961, sob a lona
centenas de crianças em alegria contagiante com as diabruras dos palhaços, no
lado de fora, o inesperado, um rapaz que fora despedido do circo, despejou uma
lata de gasolina num canto da lona grossa de algodão engomada com parafina,
altamente combustiva. Em menos de cinco minutos tudo aquilo virou um cenário de
horror. Mais de 500 pessoas morreram, cerca de 70% eram crianças. Em meio ao
inferno, um dos elefantes rompeu parte da rígida esfogueada, abrindo caminho
para muita gente se salvar! Passado algum tempo, folheei um livro no qual era
abordado o episódio proficuamente retratado pelo jornalista Mauro Ventura,
intitulado O espetáculo mais triste da terra.
O
Profeta na sua rotina de "prédicas" nas paradas de ônibus do centro
do Rio segurava um ramo de palmeira no gesto de benzer as pessoas. Documentário
Gentileza, o Profeta do Fogo do Circo.
Desse dia em
diante, José Datrino passou a visitar sobreviventes e parentes das vítimas,
para consolá-las, aconselhá-las. Dizia do sentido das palavras Gratidão pela
vida, e Gentileza, apesar do infortúnio, possivelmente pela razão da discórdia
humana como o desastre teve princípio. Iniciou sua jornada de penitência como
peregrino, tornou-se rotina do Profeta Gentileza, mas não ia longe, se ateve
pelas avenidas do centro do Rio de Janeiro. No livro constava que no fim dos
anos 70, Gentileza esteve perambulando na cidade de Conselheiro Lafaiete, Minas
Gerais, onde vivia parte de sua família, certo dia chegou a ser destratado por
jovens estudantes. Logo retornou ao Rio de Janeiro, onde passou a pintar com
sua caligrafia singularíssima e marcante estética a sua obra nas pilastras do
extenso viaduto do Gasômetro, em dizeres ensinava: “Só com Gentileza superamos
a violência que deriva do capeta-capital”; noutro dístico lia-se “Não usem
problemas, não usem pobreza, usem amor e gentileza”.
O profeta
morreu em 1996, em Mirandópolis, aos 79 anos. Seus desenhos nas paredes de
suporte do viaduto foram vandalizados, o município pintou de cinza, e
posteriormente revitalizados. Em breve tempo passou a ser reconhecido. O
profeta virou personagem na novela Caminho das Índias, representado pelo ator
Paulo José. Gentileza virou tema de enredo da Escola de Samba Acadêmicos do
Grande Rio, em seu mais festejado desfile, autoria do carnavalesco Joãozinho
Trinta. O Profeta Gentileza, um pregador urbano brasileiro, que um dia o
conheci no trajeto do ônibus Mauá 241, tornou-se mais um dos nossos mitos
contemporâneos.
Quanto ao
circo, aí é outra história, que desenrolarei em tentativa de associação
histórico-urbana, no meu próximo modesto livro sobre messianismo, beatos e
Canudos.
Adendo:
Escritor Luiz Serra, tenho real certeza que este
profeta esteve em Mossoró nos anos 80, menos de 1985. Eu o vi pela manhã mais
ou menos 9:00 horas do dia na Praça da Catedral de Santa Luzia. Com esta
plaqueta em mãos com um pé servindo como sustento ao chão. Ele explicando para
todos os presentes que havia abandonado tudo e vendido o que tinha para servir
a Deus, isto é sair pregando o seu nome. Falou que antes era caminhoneiro. A
sua presença na praça chamou a atenção de muita gente que formou um círculo.
Houve no meio daquela gente pessoas que até duvidavam e algumas expressões
ridículas como se o profeta fosse um amalucado.
Não estou enganado. Ele lia o que estava
escrito na plaqueta, porque só ele sabia o significado destes dizeres. Ao ver a
foto lembrei-me da sua presença em Mossoró.
(José Mendes Pereira).
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário