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sexta-feira, 5 de junho de 2020

HISTÓRIA E ESTÉTICA DE UM BEATO URBANO: O PROFETA GENTILEZA

Por Luiz Serra

Rio de Janeiro, manhã ensolarada, dezembro de 1969, o ônibus para defronte ao antigo Ministério da Guerra, Campo de Santana, indo para a Praça Mauá, centro da cidade. Eu adolescente estava nele seguindo, para assistir a aulas em um curso de Inglês, desde o bairro em que eu residia, sentava-me no segundo banco da direita. O motorista fala com alguém de fora assim que a porta de correr se abre: “Entra, profeta!”

Profeta Gentileza, anos 80... LuLacerda

Assim vejo entrar uma figura inusitada para mim, parecia familiar aos demais passageiros. Um senhor de olhos claros, sorridente, de longos cabelos e barba brancas, vestia uma bata alvíssima, o imaginei um desses beatos, só que em vez de um cajado segurava uma plaqueta com dizeres em caixilhos pintados, letras encostadas que não consegui decifrar, parecia escrita do antigo Egito. O profeta fez gesto de cumprimento aos que estavam atrás no veículo e assentou-se no primeiro banco. Indagou ao motorista se a família estava bem, que respondeu sobre a piora do estado de saúde de um filha. O profeta de pronto, com voz suave e rija, que entendi bem: “Nada haverá de ficar pior do que está, faça o que é de melhor, dê atenção a ela, que ficará bem!”. Seguiu-se mais um diálogo não perceptível pelo barulho.

Desfile da Escola de Samba Grande Rio. liesa.globo

Passou-se uns dez minutos, chegamos à lateral da Candelária, o profeta se levantou e avisou para descer. O motorista cuidadosamente encostou o ônibus na parada, e agradeceu ao bondoso beato pelos conselhos. O velho antes de descer virou-se para nós, passageiros, e citou o bordão que celebrizou aquele homem simples: “Não esqueçam de praticar: Gentileza gera gentileza!” – Desse modo conheci o profeta Gentileza de tantos seguidores e admiradores, dentre eles, a cantora Marisa Monte veja vídeo: https://www.youtube.com/Marisa Gentileza).

Em seguida, guardei o comentário imprevisto do motorista sobre o profeta: “Ele ficou assim depois do incêndio do circo!”

Um senhor sentado mais ao lado disse mais detalhes da vida do beato urbano Gentileza. Novas idas ao curso e mais vezes via o profeta pelas calçadas alevantando a plaqueta, enquanto uns riam outros assustavam-se, tal qual um “doidarrão pio”, da expressão primeira de Euclides. Anos seguintes, pelos jornais, interessei-me pela história, passei a conhecer o imprevisto da história de José Datrino, esse o nome do profeta que, desde menino, repetia “trazer consigo premonições sobre sua missão na terra”. O tal circo, era o Gran Circus Norte-Americano, fazia enorme sucesso nos subúrbios. Numa tarde de dezembro de 1961, sob a lona centenas de crianças em alegria contagiante com as diabruras dos palhaços, no lado de fora, o inesperado, um rapaz que fora despedido do circo, despejou uma lata de gasolina num canto da lona grossa de algodão engomada com parafina, altamente combustiva. Em menos de cinco minutos tudo aquilo virou um cenário de horror. Mais de 500 pessoas morreram, cerca de 70% eram crianças. Em meio ao inferno, um dos elefantes rompeu parte da rígida esfogueada, abrindo caminho para muita gente se salvar! Passado algum tempo, folheei um livro no qual era abordado o episódio proficuamente retratado pelo jornalista Mauro Ventura, intitulado O espetáculo mais triste da terra.

O Profeta na sua rotina de "prédicas" nas paradas de ônibus do centro do Rio segurava um ramo de palmeira no gesto de benzer as pessoas. Documentário Gentileza, o Profeta do Fogo do Circo.

Desse dia em diante, José Datrino passou a visitar sobreviventes e parentes das vítimas, para consolá-las, aconselhá-las. Dizia do sentido das palavras Gratidão pela vida, e Gentileza, apesar do infortúnio, possivelmente pela razão da discórdia humana como o desastre teve princípio. Iniciou sua jornada de penitência como peregrino, tornou-se rotina do Profeta Gentileza, mas não ia longe, se ateve pelas avenidas do centro do Rio de Janeiro. No livro constava que no fim dos anos 70, Gentileza esteve perambulando na cidade de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais, onde vivia parte de sua família, certo dia chegou a ser destratado por jovens estudantes. Logo retornou ao Rio de Janeiro, onde passou a pintar com sua caligrafia singularíssima e marcante estética a sua obra nas pilastras do extenso viaduto do Gasômetro, em dizeres ensinava: “Só com Gentileza superamos a violência que deriva do capeta-capital”; noutro dístico lia-se “Não usem problemas, não usem pobreza, usem amor e gentileza”.

O profeta morreu em 1996, em Mirandópolis, aos 79 anos. Seus desenhos nas paredes de suporte do viaduto foram vandalizados, o município pintou de cinza, e posteriormente revitalizados. Em breve tempo passou a ser reconhecido. O profeta virou personagem na novela Caminho das Índias, representado pelo ator Paulo José. Gentileza virou tema de enredo da Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, em seu mais festejado desfile, autoria do carnavalesco Joãozinho Trinta. O Profeta Gentileza, um pregador urbano brasileiro, que um dia o conheci no trajeto do ônibus Mauá 241, tornou-se mais um dos nossos mitos contemporâneos.

Quanto ao circo, aí é outra história, que desenrolarei em tentativa de associação histórico-urbana, no meu próximo modesto livro sobre messianismo, beatos e Canudos.

Adendo:

Escritor Luiz Serra, tenho real certeza que este profeta esteve em Mossoró nos anos 80, menos de 1985. Eu o vi pela manhã mais ou menos 9:00 horas do dia na Praça da Catedral de Santa Luzia. Com esta plaqueta em mãos com um pé servindo como sustento ao chão. Ele explicando para todos os presentes que havia abandonado tudo e vendido o que tinha para servir a Deus, isto é sair pregando o seu nome. Falou que antes era caminhoneiro. A sua presença na praça chamou a atenção de muita gente que formou um círculo. Houve no meio daquela gente pessoas que até duvidavam e algumas expressões ridículas como se o profeta fosse um amalucado. 

Não estou enganado. Ele lia o que estava escrito na plaqueta, porque só ele sabia o significado destes dizeres. Ao ver a foto lembrei-me da sua presença em Mossoró.

 (José Mendes Pereira). 


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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