O nome é uma homenagem da armadora japonesa à companheira de Lampião e o navio fará a linha entre o Japão e portos brasileiros
Foto: Rubens Onofre, publicada com a matéria Maria Bonita vira heroína de capitão japonês José Carlos Silvares Não seria nada de mais um navio ganhar o nome de Maria Bonita se fosse uma embarcação brasileira. Não é o caso. O navio é japonês, com bandeira do Panamá e tripulação coreana. Nada, a bordo, lembra o sertão nordestino. Mas o Maria Bonita existe, está no porto, e vai passar por Santos a cada três meses, em linha regular ligando o Brasil ao Japão e portos do Oriente. É um navio bonito, lançado ao mar no dia 11 de novembro do ano passado (N.E.: de 1986), ainda virgem. Faz a sua primeira viagem. Foi batizado com esse nome em homenagem a Maria Bonita, companheira de Lampião, o rei dos cangaceiros, herói-vilão que a história oficial insiste em esquecer. Maria Bonita, heroína popular, descrita em folhetos e cantada nas feiras, acabou virando nome de navio japonês. E é uma heroína para o capitão Sumio Matsumoto, o Lampião de seu navio. A única mulher a bordo é uma delicada gueixa, vestida com seda vermelha e aplicações de dourado, uma boneca japonesa, de cabelos negros e esticados, e que decora o escritório do comandante, numa caixa de vidro. "Nome de mulher dá sorte", diz o capitão Matsumoto, sorridente, explicando que conhece a história de Lampião e Maria Bonita e que o nome foi escolhido para o navio exatamente porque será empregado na linha Brasil e Japão. "É um nome muito famoso no Brasil e minha companhia, a Mitsui O.S.K. Line, pretendeu fazer uma boa impressão ao escolher esse nome". A escolha, segundo o comandante, foi minuciosa. Um diretor da armadora esteve no Rio de Janeiro, durante um mês no ano passado, especialmente para estudar a história de Lampião e Maria Bonita. Quando escolheu o nome, o submeteu à apreciação dos agentes da armadora no Brasil e a decisão foi unânime: era um bom nome. Tanto que o diretor-presidente da armadora, T. Yano, durante a cerimônia de batismo do navio, no estaleiro da Mitsubishi Heavy Industries, em Kobe, no Japão, fez um breve histórico do significado desse nome e do que foi o cangaço no Brasil. Batismo de navio também é cultura, pelo menos no Japão. Os dois lados - Mas o capitão Matsumoto sabe que a história do cangaço tem dois lados. "Há um lado de herói e um lado que não é bom", diz, acionando um gatilho imaginário com o indicador direito, para lembrar que o bando de Lampião também matava. "Ele tirava dos ricos para dar aos pobres", insistiu, quase que fazendo uma pergunta sobre a veracidade dessa informação. E comentou: "Todo o mundo deveria ser assim". Inicialmente, o comandante havia esquecido o nome de Lampião - o que pode ser considerado uma coisa normal para um oriental que não está acostumado com esse tipo de nome -, mas depois de dizer que conhece a história fez uma divertida comparação entre as lendárias aventuras no sertão nordestino do início do século e o seu navio: "Este também é um navio forte". O lado heróico de Lampião e Maria Bonita existe, para o comandante, "porque os dois são muito populares no Brasil". Ao saber que Lampião não é um herói oficial, como Tiradentes e outros, faz uma observação perspicaz: "Ele é um herói underground". De qualquer forma, Matsumoto gosta do nome do seu navio. Mas diz com orgulho que esta é a primeira vez que a armadora põe um nome feminino em navio da frota. Não é o primeiro navio, porém, que leva o nome de Maria Bonita, companheira de Lampião. O livro de registro de todos os navios do mundo, editado pelo Lloyd's de Londres, informa que há um outro Maria Bonita, um pesqueiro de 143 toneladas registrado no Texas, Estados Unidos, e que pertence à empresa com o sugestivo nome de Ojos Negros Inc.
Capitão Matsumoto conhece a história e assume: "Eu sou o Lampião"
Foto: Rubens Onofre, publicada com a matéria Velho conhecido - O capitão Matsumoto esteve em Santos pela primeira vez há cerca de 20 anos, como 2º oficial do famoso Brazil Maru, que transportava carga e passageiros. Mas é comandante há cinco anos, sempre nos navios da Mitsui. O último que comandou, antes do Maria Bonita, foi o Barzan, um enorme navio-contêiner que faz a linha entre Nova Iorque e os tumultuados portos do Golfo Pérsico. No início de outubro, Matsumoto foi deslocado para Kobe, para acompanhar de perto o final da construção do Maria Bonita e fazer uma verificação geral nas instalações. É um navio próprio para o transporte de contêineres, moderno, com equipamenos sofisticados a bordo. Pertence a uma empresa registrada no Panamá, a Ocean Harmony S.A., controlada pela Mitsui, que aparece como afretadora do navio. Tem 14 mil toneladas de porte bruto, 155 metros de comprimento por 25 de largura e calado que chega aos 10 metros. Viaja à velocidade de 15,3 nós horários. A tripulação é composta por dois japoneses - o capitão e o 1º oficial - e 29 coreanos, inclusive sete membros da oficialidade. Os coreanos, hoje, na navegação internacional, tomaram conta de postos que anteriormente eram ocupados apenas por oficiais do país da bandeira do navio ou da nacionalidade da armadora. São força de trabalho mais barata e à disposição das empresas. O Maria Bonita - agenciado em Santos pela Wilson Sons - estava com saída prevista para o início da noite de ontem, rumo ao Sul. Em Santos deixou grande quantidade de maquinaria, produtos químicos, produtos industrializados e carga geral embarcada nos portos de Cingapura, Hong Kong, Keelung, Nagoya, Kobe, Yokohama, passando ainda nos portos de Colombo (Ceilão), Galets (em Reunião, uma ilha francesa do Oceano Índico) e nas Ilhas Maurícios (também no Índico). Vai a Montevidéu, Buenos Aires e retorna por Rio Grande, Paranaguá, Rio de Janeiro, Santos - de onde segue em linha reta, via Sul da África, para Brisbane, Austrália, em viagem de 23 dias de céu e mar até chegar de novo aos portos japoneses. Na próxima viagem ao Brasil o navio virá via Canal do Panamá, encurtando o percurso. E a cada três meses cumprirá sua rota entre Japão e América do Sul. Depois de falar com orgulho de seu navio, o capitão do Maria Bonita faz questão de vestir seu uniforme branco, para a foto. Pronto. Agora ele é o capitão. E corrige, sorridente: "Agora eu sou o Lampião".
O presidente da armadora falou de Maria Bonita no dia do batismo do navio
Foto: divulgação, publicada com a matéria Maria de Oliveira, Maria de Déa, bonita Pouco se sabe da companheira de Lampião e de suas aventuras no sertão nordestino. Muita coisa é folclore. Maria Bonita virou mito, como Lampião e os cangaceiros. Virou filme, livro e história de cordel. Era uma mulher destemida. Era apenas Maria, Maria de Oliveira, e de bonita tinha os traços marcantes de mestiça, olhos ligeiramente puxados, ar maroto. Era também Maria de Déa, porque filha de Déa, mulher do lavrador José Felipe de Oliveira, que tinha um sítio no Norte da Bahia, onde Maria teria nascido. Aos 17 anos casou com um pacato sapateiro, José de Neném. Ficou com ele até conhecer Lampião. As histórias contam que Maria abandonou José e também que foi José quem abandonou Maria. Teorias machistas de lado, a verdade é que Lampião namorou Maria: passou três vezes pelo sítio, até que um dia os dois se encontraram para viverem juntos por cerca de nove anos, entre 1929, ano do encontro, até a morte na caatinga, a 28 de julho de 1938. Antes e depois da morte, Maria foi chamada de tudo nos jornais: facínora, amásia de bandido, amante de bandoleiro etc. Até de ciumenta, conforme trecho de matéria publicada no dia 3 de agosto de 1938 por A Tribuna, com base em noticiário fornecido pelas agências de notícias: "Maria de Déa, como se chamava ela, não era uma figura feminina traçada na suavidade e no sentimentalismo do sexo. Ciumenta, sobretudo muito ciumenta. Desde que se colocou ao lado do facínora, jamais teve este coragem de dirigir sequer um olhar mais atrevido para outra". E prossegue: "Maria de Déa era a companheira de Lampião em todas as circunstâncias. Na hora da luta, era um rifle a mais ao lado dos bandidos. Um combatente que se ombreava entre os mais destemidos e mais decididos. Atirava admiravelmente. Sabia adivinhar os planos do amante e auxiliar-lhe a execução. Não conhecia sentimentos humanos nos momentos difíceis. Matava e saqueava, como os mais cruéis bandidos". A matéria diz, ainda, que o amor de Maria Déa por Lampião "teve uma origem de romance". E que foi a primeira mulher do bando. Nem tudo o que se diz dela, porém, é verdadeiro. Há muitas lendas misturadas a fatos reais, divulgados por cantadores nas feiras e, depois, nos folhetos de cordel. Maria Bonita virou mito. Virou exemplo de mulher arrojada, forte, decidida, a mulher nordestina. É sinônimo de companheira. Está nas cantigas populares. Virou heroína. E foi citada no Exterior, aplaudida nos filmes, ganhando ares de sensualidade na interpretação de Tânia Alves, em especial da Globo. Até o jornal francês Paris Soir fez uma referência elogiosa a ela, apesar de indireta, na edição que divulgou o massacre de Angicos, local da morte do bando de Lampião. A notícia termina exatamente assim: "Lampião, o invulnerável; Lampião, o cruel, também amava".
Heroína popular, decidida, corajosa, ciumenta, malfalada. Maria
Foto: reprodução, publicada com a matéria |
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