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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

DELMIRO GOUVEIA - Parte I

 Por: Telma de Barros Correia (Profa. Dra, SAP-EESC-USP)

A TRAJETÓRIA DE UM INDUSTRIAL NO INÍCIO DO SÉCULO XX

A Ascensão no Mundo dos Negócios

O comerciante e industrial Delmiro Gouveia foi um personagem ímpar no cenário brasileiro em fins do século XIX e início do XX. Protagonizou uma conturbada trajetória no mundo dos negócios e da política em Pernambuco e Alagoas, realizando empreendimentos inovadores, colecionando inimigos poderosos e construindo uma reputação individual insólita, onde atributos como destemor, ousadia e autoritarismo articulam-se delineando o perfil deste singular homem de negócios.
                
No início do século XX, Delmiro já era uma lenda viva entre os recifenses. O empresário jovem, elegante e charmoso que despontava no mundo dos negócios - recém enriquecido no florescente comércio de couros - causava furor tanto pelo sucesso do moderno centro de comércio e lazer que criara - o Derby -, quanto pela corajosa oposição que fazia ao poderoso grupo político situacionista liderado por Rosa e Silva. Sua tumultuada vida amorosa - alvo de mexericos, escândalos e denúncias na imprensa - não deixava de contribuir para mantê-lo em constante evidência. A retirada para o Sertão de Alagoas longe de ter implicado numa redução do interesse em torno de Delmiro, só veio a reforçar os mitos que já vinham se construindo em torno dele. A construção da usina elétrica no rio São Francisco, da fábrica de linhas de costura - a primeira do Brasil - e do núcleo fabril da Pedra, colocaram-se para seus admiradores como novos indícios dos dotes exemplares que reunia como empresário. Sua morte violenta, assassinado em 1917, aumentaria o interesse pelo personagem, que desde então tem sido tema de numerosos estudos, obras de ficção e homenagens.
                
Delmiro nasceu em 1863, em Ipú, no Ceará. Em 1868, após a morte de seu pai, transferiu-se com a família para Goiana, em Pernambuco, e em 1872, para o Recife, onde começou a trabalhar em 1878, após a morte de sua mãe. Nesse ano, empregou-se como cobrador na Brazilian Street Railways Company, onde exerceu, em seguida, a função de Chefe da Estação de Caxangá, no Recife. Em 1881, era despachante em armazém de algodão. Dois anos depois, exercia a função de intermediário entre comerciantes do interior e firmas exportadoras de peles e algodão - Herman Lundgren e Rossbach Brothers. De empregado da filial no Recife do curtume americano Keen Sutterly & Co., em 1892, passou a gerente no ano seguinte. Simultaneamente, desde 1891, estabeleceu - inicialmente em sociedade com o inglês Clément Levy - um armazém de compra e exportação de courinhos (peles de cabra e bode). Nos últimos anos dessa década, detinha o monopólio deste comércio no Recife e partia para outros empreendimentos paralelos. Em 1899, assumiu a direção da Usina Beltrão - uma fábrica de refino de açúcar - e inaugurou o Derby - um centro de comércio, serviços e lazer que incluía mercado, hotel, velódromo e pavilhão de diversões. Em 1900, conflitos políticos entre Delmiro e governantes pernambucanos resultaram no incêndio do Mercado do Derby pela polícia e na inviabilização da Usina Beltrão e da própria permanência de Delmiro no estado. Em 1903, Delmiro tornou-se proprietário de uma fazenda em Pedra, no Sertão de Alagoas, na qual centralizou seu comércio de peles. Em 1913, construiu uma usina hidrelétrica junto à Cachoeira de Paulo Afonso, para fornecer energia à fábrica de linhas de costura que inaugurou no ano seguinte, em Pedra. Com a fábrica, criou no interior da fazenda um núcleo fabril dotado de habitações, comércio, hotel, escolas e equipamentos de lazer. Em 1917, foi assassinado em Pedra.
                
Coerente com a postura adotada por muitos industriais adeptos e difusores da ética do trabalho, Delmiro procurou incorporar à sua imagem empresarial a figura de um trabalhador infatigável. O trabalho era enaltecido por Delmiro que, através dele, procurava explicar seu sucesso nos negócios e a origem de sua rápida fortuna. Em artigo de 1898, Delmiro lançou mão da idéia de trabalho para responder às críticas de seus adversários políticos no Recife, que lançavam dúvidas quanto à probidade de seus negócios:

"Enquanto elles viviam pelas ruas, cafés, casas de pensão, restaurants, trens e mesmo em seus escriptórios, onde à falta de trabalho passam o tempo a se occupar da vida alheia, eu estava no labor do meu negócio, externuando-me na verdadeira lucta pela vida, afim de conseguir o que tanto hoje os incommoda" (GOUVEIA, 1 jan. 1898, 2).

Procurando rebater insinuações acerca do mistério que cercou seu breve trajeto de vendedor de bilhetes de trem até próspero comerciante, Delmiro argumentava: "O que medeia entre essa humillissima posição e a de um industrial util á minha patria, que sou hoje, é apenas uma pagina de trabalho" (GOUVEIA, 7 jul. 1899, 4). Delmiro contrapunha o trabalho ao ócio e a formas de obtenção de recursos que tratava com desprezo, tais como o jogo, a usura e a bajulação:

"Fiquem certos esses calumniadores de officio que não ganho nem estrago dinheiro em jogatinas; não empresto a juros de vinagre; não sirvo de capacho, de limpa botas de quem está acima de mim em posição ou vantagens (...)" (GOUVEIA, 5 jan. 1900, 2).

Coerente com a glorificação do trabalho que ganha adeptos nas classes dominantes - percorrendo o pensamento burguês, o ideário positivista, o catolicismo social, doutrinas puritanas e evangélicas -, Delmiro elege o trabalho como o principal atributo moral dos indivíduos. Vê no trabalho um sinal de personalidade bem formada do ponto de vista moral, um indício de honra, perseverança e energia. Ao trabalho, por outro lado, atribui a capacidade de engrandecimento do indivíduo, pelo enobrecimento moral e pelo acesso a bens materiais. O elogio do mérito individual e a noção de igualdade de oportunidades, outros dos princípios do pensamento liberal, são também mobilizados por Delmiro para explicar sua trajetória no mundo dos negócios, revidando críticas quanto à lisura de seus negócios feitas por adversários:

"Si elles tivessem no sangue, nos nervos, nas faces, vergonha, e no organismo alguma coisa de energia e sentimento, deviam orgulhar-se de haver um homem do povo, pobre porém trabalhador, capaz de mostrar-lhes com exemplos que quem lucta pela vida com honradez, actividade e perseverança, póde conseguir uma posição na sociedade e, em vez de andarem pelas ruas, cafés, trens e esquinas empregando-se na maledicência, podiam dedicar-se ao trabalho proveitoso, que nobilita o homem e dá-lhe sempre o direito de confundir seus inimigos gratuitos" (GOUVEIA, 1898, 2).
               
Ao lado do trabalhador, outro atributo que costuma ser associado à imagem empresarial de Delmiro é o de nacionalista. As bases para a construção desta noção foram lançadas pelo próprio industrial na década de 1910. Mobilizando uma argumentação em que procurava associar os interesses da indústria aos da Nação e sentimentos nativistas e cívicos que se propagavam no País na década de 1910, Delmiro apelou para idéias nacionalistas na promoção da fábrica de Pedra e no pleito de concessões e incentivos públicos. Obteve junto ao Governo de Alagoas amplas concessões que incluíram o direito de posse de terras devolutas, a isenção de impostos para a fábrica, a permissão para captar energia elétrica da Cachoeira de Paulo Afonso e recursos para financiar a construção de cerca de 520 quilômetros de estradas, ligando Pedra a outras localidades. Mobilizou ainda argumentos de cunho nacionalismo no intuito de sensibilizar os consumidores a darem preferência à linha "Estrela" fabricada em Pedra, em detrimento das fabricadas por empresas estrangeiras. A geração de empregos para brasileiros, a utilização de matéria-prima nacional e a quebra de monopólios eram os argumentos usados em anúncio veiculado na imprensa:

"Nossa Fábrica ocupa 2.000 operários brasileiros e nossa linha é fabricada com matéria prima exclusivamente nacional. Esperamos que o público não deixará de comprar a nossa linha, de superior qualidade, para dar preferência a mercadoria estrangeira ou com rótulo aparente de nacional. Se não fôsse a linha "Estrêla" o preço de um carretel estaria por 500 réis ou mais; o público deve o benefício do barateamento dêste artigo de primeira necessidade, à nossa indústria" (MENEZES, 1963, 134-135).

A intensa disputa de mercado entre Delmiro e a Machine Cotton, fabricante da linha "Corrente" contribuiu para convertê-lo em um dos símbolos mais fortes da causa nacionalista em todo o País. Matéria do Jornal do Commércio do Recife, de 1922 - reproduzida pelo Correio da Pedra - mostrava a fábrica da Pedra como elemento de soberania nacional:

"A importante fabrica de linhas, que era o inicio daquelle faustoso emporio industrial ahi está produzindo em franca e vantajosa competencia com suas similares, pondo-nos á salvo da tutella pesada do estrangeiro" (Correio da Pedra, 22 out. 1922, 1).

A disputa entre a Machine Cotton e a fábrica da Pedra se estendeu por longos anos, tendo-se acirrado na década de vinte. Esta concorrência acirrada levou a Fábrica da Pedra a sucessivos prejuízos no tocante à fabricação de linhas de coser, apenas parcialmente compensados pelos lucros decorrentes da produção de fios industriais. Em 1926, o Presidente Artur Bernades assinou o Decreto N. 17.383, elevando a taxa de importação sobre as linhas de coser. O Decreto, no entanto, foi revogado dois anos depois pelo Presidente Washington Luís, motivado, inclusive, por pressões do Embaixador e de banqueiros ingleses, que qualificavam o Decreto de ato de hostilidade comercial. Após haver tentado, sem sucesso, comprar Pedra a Delmiro, a Machine Cotton, em 1929 - 12 anos após a morte deste -, realizou seu intento de tirar a fábrica da Pedra da produção de linhas. Para tanto, a Machine Cotton adquiriu dos então proprietários de Pedra (os irmãos Menezes, também donos da Fábrica Têxtil de Camaragibe, em Pernambuco) as marcas registradas das linhas e os maquinismos específicos para sua fabricação. Pelo acordo, Pedra permaneceria fabricando apenas fios industriais; seus proprietários não poderiam por dez anos participar direta ou indiretamente de negócios relativos à fabricação de linhas ou venda de fios para a fabricação por terceiros. À aquisição, seguiu-se a destruição das máquinas, aniquiladas a golpes de picareta e atiradas ao Rio São Francisco. A violência deste gesto e a agressividade da disputa de mercado por parte da fábrica escocesa deram subsídios para que Pedra fosse convertida em marco da luta contra o imperialismo. No mesmo sentido, procurou-se converter Delmiro Gouveia em mártir da causa nacionalista. Embora fosse então amplamente aceito que seu assassinato houvesse sido conseqüência de disputas com coronéis de cidades vizinhas, progressivamente dúvidas foram sendo lançadas sobre suas causas. A Machine Cotton foi incorporada ao rol dos suspeitos por uns, por outros acusada de haver promovido o assassinato.

CONTINUA...


Clique nos links abaixo para você ler: Parte II, Parte III e Parte Final, sobre Delmiro Gouveia          

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