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segunda-feira, 28 de julho de 2014

O RIO DA MINHA ALDEIA

Por Rangel Alves da Costa*

Fernando Pessoa relata em traços poéticos o rio que passa pela sua aldeia. E diz que não é o maior nem o mais caudaloso do mundo, mas é o mais belo porque o rio que passa pela sua aldeia. Não importa a grandiosidade, sua pujança, sua força fluvial, pois o que importa é a sua presença na vida ribeirinha e diante das pessoas que com ele convive. Eu também tinha um rio assim, um rio que de vez em quando enchia de graça e vida toda a minha aldeia.

Ele ainda está lá, o rio não abriu caminho por outras terras e abandonou minha aldeia, mas quase não se parece mais com aquele singelo leito de outros tempos. Por muito tempo, principalmente em períodos de estiagens, permanecia quase vazio, apenas de leito terroso e suas pedras imponentes. Mas de repente ressurgia numa vivacidade voraz e sedenta, levando tudo que no seu berço adormecia diante de sua tristeza e do seu silêncio.

O Jacaré é o rio que passa pela minha aldeia. Nascido nas vertentes da Serra da Guia, perto da divisa com a Bahia, timidamente vem abrindo caminho feito cobra torta pelas ribeiras sertanejas. Na verdade, não passa de um riacho, ou riachinho como é mais conhecido, despertando imponente após as cheias das trovoadas nas cabeceiras. E o leito seco, sujo, tomado de garranchos e ossadas de animais, de repente abria sua boca e corria engolindo tudo.

Dependendo das chuvaradas na nascente, o leito magro se alongava tanto que chegava aos quintais. Mas era preciso duas a três cheias na mesma leva para que as águas salobras levassem as imundícies e permitissem que a meninada traquina se arriscasse a mergulhar. Depois era uma festa só e durante cerca de uma semana a molecada não queria outra vida senão pular das pedras nas águas novas. Mas tudo muito passageiro, pois de repente as areias grossas começavam a reaparecer e apenas pequenos poços recebiam a visita dos bichos sedentos. E bebiam para iludir a sede, pois a salubridade acabava provocando verdadeiro tormento.


Mas o homem se incumbiu de devastar todo o leito do riachinho, suas margens e sua história. Não só as pedras foram retiradas e destinadas às construções, como as areias foram transportadas para outros destinos. As matas ciliares foram sendo devoradas pelos facões e até os poços ao redor das pedras grandes deixaram de existir. Mas as cheias continuam, pois a degradação do leito nada tem a ver com a nascente, e quando elas chegam é que se percebem as consequências da voracidade destruidora do ser humano. Apenas águas sujas e velozes seguindo viagem sem permitir que os moradores usufruam as alegrias daquelas enchentes certeiras.

O rio ainda passa pela minha aldeia, porém transformado e feio, previsível demais, e com águas logo misturadas aos esgotos que descem de suas margens, aos verdadeiros poços de doenças e podridões que vão surgindo nos períodos de estiagens. As cheias de agora não servem mais aos banhos e aos divertimentos da meninada sertaneja, mas apenas para levar nas águas o verdadeiro monturo que se espalha pelo leito nas épocas de estiagens. E não demora muito para novos lixões surgirem ao lado de poças escurecidas e cheias de mosquitos infectados que mais tarde estarão pelas residências.

Havia, assim, outro rio, outro riacho Jacaré que passava pela minha aldeia. Não apenas o leito de águas correntes, não somente a veia molhada cortando caminhos e enchendo de graça os dias antigos da meninada, mas um rio simbolizando a própria força de renascimento do sertão. Eis que no silêncio da noite o barulho de suas águas era ouvido e logo reconhecido por todo mundo. E aquilo anoitecido na secura já enchia a madrugada de vida nova. E o sertanejo corria às suas margens para apreciar tanta beleza.

Assim como o homem, a terra e os animais, assim como revelado no Eclesiastes, tudo se transformando perante a transformação da natureza, do sol de ontem e da chuva de hoje, da tristeza de antes e do sorriso de agora, eis também o rio que passa pela minha aldeia. Desperta no impensável e ainda se faz imponente, mas não mais como antigamente. Hoje apenas um riacho que sente necessidade de correr veloz para levar na sua força os restos da devastação e das mazelas depositadas no seu leito.

E por culpa não só dos habitantes de minha aldeia, mas de todo o sertanejo que faz de suas margens e do seu leito aquilo que não desejaria avistar nos quintais de suas moradias.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Postado por Adryanna Karlla Paiva Pereira Freitas
http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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