Por Rangel Alves
da Costa*
Fernando
Pessoa relata em traços poéticos o rio que passa pela sua aldeia. E diz que não
é o maior nem o mais caudaloso do mundo, mas é o mais belo porque o rio que
passa pela sua aldeia. Não importa a grandiosidade, sua pujança, sua força
fluvial, pois o que importa é a sua presença na vida ribeirinha e diante das
pessoas que com ele convive. Eu também tinha um rio assim, um rio que de vez em
quando enchia de graça e vida toda a minha aldeia.
Ele ainda está
lá, o rio não abriu caminho por outras terras e abandonou minha aldeia, mas
quase não se parece mais com aquele singelo leito de outros tempos. Por muito
tempo, principalmente em períodos de estiagens, permanecia quase vazio, apenas
de leito terroso e suas pedras imponentes. Mas de repente ressurgia numa
vivacidade voraz e sedenta, levando tudo que no seu berço adormecia diante de
sua tristeza e do seu silêncio.
O Jacaré é o
rio que passa pela minha aldeia. Nascido nas vertentes da Serra da Guia, perto
da divisa com a Bahia, timidamente vem abrindo caminho feito cobra torta pelas
ribeiras sertanejas. Na verdade, não passa de um riacho, ou riachinho como é
mais conhecido, despertando imponente após as cheias das trovoadas nas
cabeceiras. E o leito seco, sujo, tomado de garranchos e ossadas de animais, de
repente abria sua boca e corria engolindo tudo.
Dependendo das
chuvaradas na nascente, o leito magro se alongava tanto que chegava aos
quintais. Mas era preciso duas a três cheias na mesma leva para que as águas
salobras levassem as imundícies e permitissem que a meninada traquina se
arriscasse a mergulhar. Depois era uma festa só e durante cerca de uma semana a
molecada não queria outra vida senão pular das pedras nas águas novas. Mas tudo
muito passageiro, pois de repente as areias grossas começavam a reaparecer e
apenas pequenos poços recebiam a visita dos bichos sedentos. E bebiam para
iludir a sede, pois a salubridade acabava provocando verdadeiro tormento.
Mas o homem se
incumbiu de devastar todo o leito do riachinho, suas margens e sua história.
Não só as pedras foram retiradas e destinadas às construções, como as areias
foram transportadas para outros destinos. As matas ciliares foram sendo
devoradas pelos facões e até os poços ao redor das pedras grandes deixaram de
existir. Mas as cheias continuam, pois a degradação do leito nada tem a ver com
a nascente, e quando elas chegam é que se percebem as consequências da
voracidade destruidora do ser humano. Apenas águas sujas e velozes seguindo
viagem sem permitir que os moradores usufruam as alegrias daquelas enchentes
certeiras.
O rio ainda
passa pela minha aldeia, porém transformado e feio, previsível demais, e com
águas logo misturadas aos esgotos que descem de suas margens, aos verdadeiros
poços de doenças e podridões que vão surgindo nos períodos de estiagens. As
cheias de agora não servem mais aos banhos e aos divertimentos da meninada
sertaneja, mas apenas para levar nas águas o verdadeiro monturo que se espalha
pelo leito nas épocas de estiagens. E não demora muito para novos lixões
surgirem ao lado de poças escurecidas e cheias de mosquitos infectados que mais
tarde estarão pelas residências.
Havia, assim,
outro rio, outro riacho Jacaré que passava pela minha aldeia. Não apenas o
leito de águas correntes, não somente a veia molhada cortando caminhos e
enchendo de graça os dias antigos da meninada, mas um rio simbolizando a
própria força de renascimento do sertão. Eis que no silêncio da noite o barulho
de suas águas era ouvido e logo reconhecido por todo mundo. E aquilo anoitecido
na secura já enchia a madrugada de vida nova. E o sertanejo corria às suas
margens para apreciar tanta beleza.
Assim como o
homem, a terra e os animais, assim como revelado no Eclesiastes, tudo se
transformando perante a transformação da natureza, do sol de ontem e da chuva
de hoje, da tristeza de antes e do sorriso de agora, eis também o rio que passa
pela minha aldeia. Desperta no impensável e ainda se faz imponente, mas não
mais como antigamente. Hoje apenas um riacho que sente necessidade de correr
veloz para levar na sua força os restos da devastação e das mazelas depositadas
no seu leito.
E por culpa
não só dos habitantes de minha aldeia, mas de todo o sertanejo que faz de suas
margens e do seu leito aquilo que não desejaria avistar nos quintais de suas
moradias.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Postado por Adryanna Karlla Paiva Pereira Freitas
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário