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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

“O GLOBO” - 12/11/1958 - Capítulo VIII

Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho

COMO SE FORJA UM CANGACEIRO

FERRUGEM MATA GAVIÃO

O BANDO deixou o arraial de Queimada em duas turmas, e carregamos dois moradores para servirem de guias. Andamos muito, e tal foi a desorganização da retirada, que o bando ficou dividido em vários grupos. No último grupo vínhamos o guia, eu, Ferrugem e Gavião, mas é bom não confundir este Gavião com o que mencionei na história de Sabiá. Aquele ainda não tinha aparecido, e era um rapaz. O Gavião a que me refiro era um caboclo já maduro, veterano do bando, mau como cobra cascavel, e uma das criaturas mais sórdidas que já conheci.

O guia que vinha com o nosso grupo a todo instante reclamava, pois o seu cavalo estava estrompado e mancando, além de tudo, implorou para que o deixássemos ir embora, mas Gavião, por perversidade, não permitiu. Eu então observei-lhe que já não precisávamos mais de guia, mas ele não ligou. Ferrugem aborreceu-se e disse também que o guia já podia ser dispensado. Gavião enfureceu-se, disse que o guia continuaria e, se o importunassem muito, ele mataria o infeliz. E acrescentou que, quando o cavalo cansasse de vez e caísse morto, o guia continuaria a pé!

O FIM DE GAVIÃO

OLHEI para Ferrugem e ele compreendeu meu olhar. Nenhum de nós gostava do Gavião, e aquela era a hora ideal para ajustarmos contas. Então eu disse: - “Gavião, o guia vai voltar daqui e você não vai fazer nada!” Gavião olhou-me ironicamente e, quando fez menção de levantar o fuzil, Ferrugem acertou-o no peito, não me dando tempo de participar.
Gavião ficou estirado no chão, morto, e eu perguntei a Ferrugem o que diríamos a Lampião. A coisa não estava boa, pois Virgulino não admitia brigas no bando, dizendo que nós éramos todos irmãos. Depois, ele gostava de Gavião.

De tanto pensar eu tive uma ideia. Chamei o guia e disse-lhe que apanhasse as armas de Gavião, cortasse suas orelhas e montasse no seu cavalo. Quando chegasse ao povoado, dissesse que matara o Gavião e, provavelmente, ele ganharia um prêmio. O guia sorriu com a ideia, agradecendo de joelhos a mim e a Ferrugem por lhe termos salvo a vida. E fez o que lhe disse. Tirou o equipamento de Gavião e, com a faca de Ferrugem, cortou-lhe as orelhas e as pôs no seu bornal. Em seguida, montou no cavalo dele e, depois de muito agradecer nossa interferência, lá se foi. Eu e Ferrugem continuamos a avançar até que encontramos, ao fim de um dia, o resto do bando. Lampião, mal nos viu, perguntou logo: 

- “E o Gavião?” 

Respondi: - “Ele se atrasou e vem por aí com o guia”...

Os dias se passaram, e Gavião não apareceu. Um mês ou mais depois, um jornal de Salvador caiu nas mãos de Lampião, trazendo na primeira página, em manchete, a história de um rapaz improvisado em guia e que liquidara o “perigoso cangaceiro Gavião”... Trazia até a fotografia do rapaz com o equipamento e as orelhas de Gavião, uma em cada mão. Lampião leu e enfurecido bradou: - “Ah! Se eu pego esse cão...”

Eu e Ferrugem nos entreolhamos e nunca mais, nem eu, nem ele, tocamos no assunto. O rapaz “matador de cangaceiro”, que não era bobo, nunca mais voltou ao mato.

A ESTRATÉGIA DE LAMPIÃO

A vaidade de Lampião fazia-o crer que era um grande estrategista militar. Não que ele entendesse de tática guerreira, mas possuía um raciocínio rápido e de que sabia fazer bom uso nas horas de tiroteio. Calculava como ninguém as evoluções da força volante e era capaz de dizer que dentro de tantas horas estaríamos numa refrega. O bando, tal era a precisão de seus atos na hora da luta, devotava uma confiança ilimitada nas suas ordens. Ele nunca se enganava, e os soldados que nos combatiam sabiam muito bem como era difícil surpreender Lampião. Mesmo depois de cercado, Lampião era difícil de ser dominado.

Sua esperteza para fugir dos inimigos era tão impressionante, que relatarei uma delas, que presenciei e não consegui esquecer jamais. Certa feita, quando andávamos perseguidos, Lampião, depois de fugirmos muito, resolveu pregar uma peça aos soldados e mandou que catássemos cascas de Ouricuri. Essas cascas assemelham-se bastante a uma canoa de pescador, só que são mais curvas e muito menores, é claro, do tamanho de um chapéu, mais ou menos.

De posse das cascas, Lampião ordenou que se colocassem as mesmas sobre várias casas de cupim, mandou armarem algumas trempes e fez fogo. Era noite e, terminado o trabalho, batemos em retirada sem querer saber do resultado na hora. O aspecto que apresentavam os cupins com as cascas por cima era o de um cangaceiro de chapéu de couro com aba virada na frente. O recurso psicológico da noite, bem como do fogo, ajudaram bastante ao plano de Lampião.

Muito longe do local, em nossa retirada, ouvíamos os estampidos de uma violenta fuzilaria. No dia seguinte, soubemos que os soldados, julgando que se tratava do bando em torno do fogo, puseram-se a atirar e acabaram entrando em confusão, havendo até morte entre eles, sem contar os feridos... E os comentários entre eles era de que enfrentaram Lampião, causando-lhe baixas.

POR QUE O CEARÁ ESCAPOU

LAMPIÃO gostava muito de atacar pela retaguarda. Se perseguido, fazia tudo para adiantar-se e surpreender o adversário pelas costas, andando em círculos. Surpreendido, porém, ordenava aos “cabras” “queimar só numa direção”, o que equivalia a dizer que atirar para todos os lados seria perder tempo. Atirando só para uma direção, aquele ponto era dizimado e oferecia uma brecha para a fuga.

A pouca idade e o tempo decorrido não me permitiam uma melhor compreensão para explicar as táticas usadas para tomar uma cidade de assalto. É bem verdade que poucas vezes tivemos que agir assim, pois quase sempre Lampião pedia ao prefeito ou ao delegado para entrar com o bando. Se houvesse recusa, ele entrava pela violência, mas antes fazia com que vários homens se infiltrassem no povoado. Ele sabia comandar, e na hora do tiroteio era um gigante, sempre à frente. Sua coragem não faltava nunca, e ele sabia que ela era a sua fiadora junto ao bando. Era sempre quem atirava primeiro e, se ainda há tempo para acrescentar um detalhe, convém dizer que Lampião possuía uma pontaria espantosa.

Mas geralmente não atacávamos povoados, entrávamos pacatamente e tomávamos conta de tudo. O bando entrou em muitas cidades, inclusive em Juazeiro, a cidade do Padre Cícero, que tudo fez para converter Virgulino. Lampião tinha grande admiração pelo Padre Cícero, a ponto de o santo homem lhe pedir para não fazer estripulias no Ceará. Lampião atendeu quanto pôde a esse pedido, pois, de fato, o Ceará foi, dos estados nordestinos, o que menos sofreu os efeitos do cangaço do “capitão” Virgulino.

Próximo capítulo: o bando sabia admirar os corajosos

CONTINUA...

Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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