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quarta-feira, 29 de agosto de 2018

QUEM MATOU CHICO CHICOTE? POR:HÉRLON FERNANDES GOMES

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Hoje, no aniversário de Brejo Santo, compartilho com vocês do primeiro capítulo de Quem Matou Chico Chicote? Uma novela sobre o "Império do bacamarte" (ou seria um romance?), que explora o episódio do Fogo das Guaribas, ocorrido em 1927. Boa leitura.
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CAPÍTULO I - INFÂNCIA 
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Donina pôs a mão no peito para segurar a dor daquela visão. Sentia que ia desfalecer. Manuelzão vinha às pressas com seu filho nos braços, Chico, de doze anos. Acompanhavam-nos um séquito de mais uns seis homens, todos envolvidos na escavação de uma cacimba ali nas proximidades. A senhora pôde observar, também, que Domingos, o moleque de mandados e de recados, trazia arrastada pela estrada uma cobra morta. - Uma cascavel, Donina. A traiçoeira tava entocada num pé de juá. Pegou o menino. Só ouvimos o grito. Mas ele tá vivo!
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A mãe, aflita, nada conseguia verbalizar. Em sua cabeça só aparecia a figura de Araci, uma velha índia mestiça, grande curandeira daquelas bandas, tantas vezes lhe socorrera em situações difíceis. - Mandem buscar Dona Araci, já! Minha Nossa Senhora! Coloquem o menino na cama. O garoto estava mais para outro mundo do que para este. Uma febre alta fervia seu corpo. Donina lembrava que há menos de um ano uma cobra igual dera fim a um cavalo da fazenda... O pensamento fazia-a intensificar os argumentos de suas orações, para todos os nomes de santos e anjos que surgiam na memória.
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O marido chegou esbaforido. Tinha sido informado do acidente. Encarou o desespero da mulher, tentou exprimir um olhar de confiança, embora soubesse que só um milagre salvaria o filho. Em um discurso mental, repreendia o filho. Que menino mais atentado! Poderia estar na escola, como os irmãos! Incutiu de se meter com as coisas dessa cacimba. Não fazia dois meses que quase havia morrido naquela peraltice de tirar mel de um enxame... Agora de novo... Se tivesse lhe dado ouvidos... Jovino percorria a estrada em trote largo. O patrão lhe entregou o melhor cavalo. De longe pôde divisar Araci a varrer o terreiro. A velha fez um olhar de insatisfação ao receber aquele portador, pois lhe adivinhava que precisava deixar sua tapera e a calma da sua solidão. Mas era o dever chamando.
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Arrumou um pequeno matulão com seus saquinhos de ervas e vidros com suas poções misteriosas e, por último, sua memória centenária lembrou que precisava cumprir uma diligência no meio do caminho, em busca da cura. Era um preparo difícil, ela não tinha mais idade para rituais dessa espécie...Pediu para que o desconfiado capataz a suspendesse na garupa do burro. Recomendou prudência com a velocidade, pois suas juntas enferrujadas de artrite poderiam não suportar. Um sacrifício desses, só sendo pra Donina. A caridosa senhora lhe compensava com justeza as rezas que fazia nos seus filhos.
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Em determinada parte do caminho, ordenou que o rapaz parasse o cavalo e a arriasse nas proximidades de um brejo, onde se empoçava a água de um riacho. O encarregado sem indagar, cumpriu o pedido da velha. No seu vagar, a senhora levantou a barra do vestido até pouco acima dos joelhos e entrou na água lamacenta. Permaneceu em silêncio por cerca de cinco minutos. Jovino, em busca de entender o que acontecia, benzia-se sem parar. Dona Araci era cheia de magia, respeitada e temida naquelas bandas. Ou se salvavam por suas rezam, ou se perdiam nas suas pragas. Que tipo de oração era aquela? Surpreendeu-se ao ver as pernas da rezadeira, ao sair da água, apinhada de prastadas negras, que a ela destacava uma a uma, deixando fios de sangue nos cambitos engelhados. Eram sanguessugas.
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- São suficientes. Vou precisar de pelo menos uma dúzia dessas para limpar o sangue do garoto. Se houver tempo...Os horrendos bichos foram depositados dentro de uma cabaça com água. - Se apresse e me ajude, Jovino.
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Desde quando foi avisada do que havia sucedido ao menino, sabia que era caso difícil, mas não poderia dizer impossível. Às vezes os santos, com a intervenção das coisas sagradas podiam conseguir uma segunda chance, um milagre, uma saída. Era o jeito ouvir o que tinham a dizer os espíritos da mata. Achegou-se perto da cama, tomou o pulso do menino, sentiu a temperatura de seu corpo: crepitava em febre e respirava imperceptivelmente. O veneno já lhe arroxeava a brancura da pele. Era preciso agir rapidamente. Avaliara a necessidade de se fazer umas sangrias na criança, para isso, meteu-se à caça das sanguessugas.
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Juntou um molho de galhos de pinhão roxo, fez o sinal da cruz e passou a encampar uma batalha invisível sobre o corpo desnudo de Chico, interrompida por suores intensos e um eterno balbuciar de palavras, nomes sagrados de um linguajar ininteligível. Abriu os olhos, acendeu um boró, e passou a dispor as sanguessugas em uma simetria misteriosa no corpo do infante. Aquele veneno maldito e peçonhento misturava-se ao sangue do menino, misteriosamente forte, afinal, a cobra não sobrevivera ao próprio bote. Estranho tudo aquilo. O menino tinha um sangue valente. Seu destino se desenhava trágico... A índia sentiu os velhos espíritos da mata lhe segredarem coisas horríveis: um mar de sangue... Após horas e horas de transe e dezenas de folhas de pinhão murchas espalhadas pelo chão, a última sanguessuga despregou-se morta do corpo de Chico.
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Exausta e cambaleante, a centenária apoiou-se no braço de Donina e vaticinou: - Seu menino tem uma luta difícil a travar pelo resto da vida. Ele tem um destino... Agora esse veneno temperou-lhe o gênio. Há certas coisas na vida que não podemos evitar. Entregue-o às bênçãos de uma Santa Maria para que não lhe falte luz. Queime essas folhas secas de arruda, deixe essas janelas abertas. Amanhã ele estará bom novamente. A mãe pouco prestou atenção àquele mistério. Bastava-se lhe a tranquilidade daquela promessa, de que ele estaria bem.
O menino acordou fraco, mas sem febre. A primeira pergunta que fez foi sobre se já tinham terminado de cavar a cacimba. O pai riu, Donina passou a recomendar que o filho caçula, depois daquele livramento, tivesse uma rotina de vida igual a dos quatros irmãos, de escola e catecismo. Chico prometeu cumprir o pedido materno, todavia, duas semanas depois, seus pais receberam a visita do professor Mino Krebs, preocupado com a saúde do menino, afinal, há dias os irmãos Manuel, Joaquim e João informavam que o irmão não comparecia porque estaria doente.o

A inesperada visita acabou delatando as mentiras de Chico e lhe rendeu uma surra do pai. Afinal, descobriu-se que o filho faltava às aulas, para jogar pião e empinar pipa com as crianças, em um campo de várzea, onde todos tinham como única preocupação a brincadeira. Para comprar o silêncio dos irmãos, prometia-lhes piões e pipas que arrebataria nas competições às quais se destacava como exímio ganhador. 

Diante desse cenário, após se aconselhar-se com o Padre Abath, Donina convenceu Francisco que o filho deveria ser educado em um ambiente mais rígido de disciplina e, a contragosto do menino, mandaram-no ao Seminário do Crato, cerca de vinte léguas de casa.

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Seminário Episcopal do Crato, 13 de Abril de 1894
Ilustríssimo Senhor Capitão Francisco Pereira de Lucena,
Por meio desta missiva que segue com o portador, venho explicar os motivos que levaram a direção a afastar o menino Francisco, seu filho, do quadro de alunos desta casa de venerandas e ilustres tradições.

Com efeito, a vocação sacerdotal é um chamado, do qual o seu filho não aparenta aptidão. Ontem, tive de intervir energicamente contra uma contenda envolvendo seu filho que, após discussões frívolas com o também interno Horácio Teixeira, se armou de um punhal, passando a investir contra a integridade física do outro garoto, não consumando seu intento porque me pus entre os adversários.
Este lugar é um ambiente em que a paz deve ser regra de ouro, firme nos ensinamentos do Pai, motivo pelo qual tenho a desagradável incumbência de informá-lo sobre a expulsão do discente Francisco Pereira de Lucena, por conduta incompatível 
com os preceitos deste Seminário.
Deus abençoe a V.M. e a toda sua família.

Dom Quintino Rodrigues de Oliveira
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De volta ao lar, o menino Chicote sentiu que poderia respirar novamente, longe daquele ambiente sufocante de paredes altas e silêncio mórbido, cheio de rotinas enfadonhas e atividades que não lhe rendiam nenhum prazer. Nascera para correr livre, para montar seu cavalo. Estava livre. Prometera a si mesmo, pela milésima vez, que se comportaria; tentaria segurar seus impulsos de raiva e altivez que lhe renderam por último aquele desgosto dado ao pai. No lombo de Furacão, percorreu as terras da família avaliando os descuidos que sua ausência, de poucos meses, trouxe. O velho pai tinha era é de ter consciência que ele era muito mais útil ali, para executar com zelo os comandos que precisavam ser feitos.
O velho Francisco, entretanto, respeitado pela comunidade inteira por sua patente de capitão, temia aquele espírito indomável e beligerante do filho, em sempre querer impor as próprias vontades a tudo. É bem verdade que o rapazinho não era preguiçoso. Realmente nascera para os negócios. Encaminhara o menino ao Seminário por insistência de Donina, apegada à crença de que a fé nos ensinamentos cristãos abrandassem aquele temperamento inconsequente.
Continua...
Hérlon Fernandes Gomes
Pesquisador e escritor
Brejo Santo, Ceará

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