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domingo, 8 de setembro de 2019

ETERNIDADE DO PADIM


85 anos após sua morte, Padre Cícero é revisto pela Igreja Católica. A devoção dos romeiros ao sacerdote segue intocada. Desta quarta-feira, até sábado, dia 20, está programada romaria para celebrar a memória de fé. No dia em que morreu, mesmo enfraquecido e já devotado, chegou a abençoar os fiéis


As notícias sinalizavam que algo mais triste estava por vir, a partir das mensagens por telegramas enviados do Cariri, repassadas no dia anterior:

- “Crato, 19 - Padre Cícero muito mal”,

- “Joazeiro, 19 - Padre Cícero estado grave".

Na manhã de 20 de julho daquele 1934, a confirmação:

- "Joazeiro, 20 - 8hs.,45. Acaba de falecer padre Cícero. Povo em desespêro. Mandarei pormenores", alertou pelo telégrafo um colaborador chamado Jesus Rodrigues.


Partira do plano terreno, do chão dos romeiros, o sacerdote milagreiro do Nordeste, de fama que o vento espalhava além-sertão, muito além. Mesmo sem o endosso oficial do Vaticano, Padim Ciço já há muito é tido como um santo nos altares domiciliares - talvez já fosse ainda em vida. Igrejas e capelinhas da Região não fazem diferentes, apesar da ordem superior não ter sido dada.

Sobre o assunto:



Vespertino àquela época, O POVO ainda conseguiu, no calor dos fatos, estampar a informação na sua primeira página, naquela sexta-feira: "O falecimento do Padre Cícero: profunda consternação em Joazeiro". Foi o título, com a fotinha de rosto do religioso ilustrando a matéria. Sem mais detalhes apurados, e para não atrasar a edição, o texto se completou com dados biográficos do Padre. Também informado por telegrama, o final dizia: "Apesar profundo sentimento povo calmo".

Saiu logo abaixo da manchete principal: Getúlio Vargas tomaria posse naquela mesma tarde como presidente, eleito indiretamente, da então República dos Estados Unidos do Brasil. Faz 85 anos que a notícia da morte do Padim correu as ruas e conversas, mas ainda tem força e repercute.


Ele morreu 85 anos atrás, suspenso de todas as atividades de sacerdote. A motivação foi episódio ocorrido 130 anos atrás. Hoje, a Igreja conduz em sigilo o processo para reabilitá-lo (SAIBA MAIS NESTE LINK). O Vaticano reúne materialidades e entendimentos sobre o trabalho sacerdotal, a atenção aos romeiros e avida de fé. Está próxima o que pode ser a reconciliação entre ele a Igreja. Mais que isso, há perspectiva de ele ser reconhecido como um servo de Deus. É o passo anterior a se tornar venerável. Daí pode se tornar beato, até chegar ser canonizado - estes dois últimos postos dependentes de milagres atribuídos.


Nesta semana, desta quarta-feira (17) até sábado (20), está programada a romaria que marca as oito décadas e meia do falecimento do Padre Cícero. A agenda religiosa, com celebrações diárias, será fechada com a missa do dia 20 (tradicional a cada mês), na Capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. É lá que foram enterrados seus restos mortais.

Uma programação maior, que deverá durar de novembro deste ano a novembro do ano que vem, está sendo formatada pela Diocese do Crato, através de uma comissão organizadora, para marcar, em 2020, os 150 anos da ordenação de Cícero Romão Batista como padre. Ele foi seminarista em Fortaleza a partir de 1865 e se ordenou em 1870. Haverá um simpósio internacional para discutir a nova imagem de Padre Cícero, agora sendo analisada num processo de reabilitação conduzido pelo Vaticano.

Velório arrastou multidão

Cícero tinha 90 anos e quatro meses de idade quando morreu. Viveu intensamente, pode-se afirmar. A figura emblemática era o homem de batina e cajado, baixa estatura, pescoço curto e cabeça protuberante. Inofensivo na aparência, mas muito carismático e forte no posicionamento. Foi seminarista em Fortaleza e ordenado na Igreja Católica em 1870, mas afastado de sua atividade sacerdotal em 1892. Porque se envolvera na polêmica de um milagre não reconhecido pelos senhores bispos e cardeais, o da hóstia que virou sangue. O episódio incomodou do Alto Clero local aos graduados da Cúria Romana. Cícero teria omitido a informação aos seus superiores. O papa era Leão XIII. A diocese do Ceará era chefiada por dom Joaquim José Vieira. O Crato só teria diocese em 1917.

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As ordens sacerdotais de Cícero foram suspensas, mas ele nunca foi excomungado - como se comentou por muitos anos entre fiéis e livros. Uma carta com esse teor mais severo, indicando de fato a excomunhão, chegou a ser remetida de Roma para o Ceará, nos anos 1920. Nessa época, o bispo do Crato era dom Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva, então vigário à época do "milagre".

"Quando a carta chegou aqui, dom Quintino apresentou a correspondência ao Floro Bartolomeu (médico baiano, residente em Juazeiro desde 1908 e parceiro de padre Cícero na política), que era muito truculento. E ele disse que não sabia o que iria acontecer com a vida do Padre Cícero se a carta fosse mostrada. 'É capaz de ele morrer'. O bispo foi pedir ao Floro para que apresentasse a excomunhão. Mas (a ordem) era do tipo que se não fosse comunicada ela não existiria", descreve o professor e pesquisador Renato Casimiro, um dos principais estudiosos da vida do Padre Cícero. Não foi validada porque nunca foi apresentada.

Interditado, nunca se desfez do tratamento de padre - o título juntou-se a Cícero e tornou-se um nome composto. Cícero era ouvido e seguido por muita gente. Já bem antes de ser rezado e devotado como hoje. Foi o mediador ou personagem direto de conflitos e acordos políticos e querelas policiais, amigo de jagunços e do cangaceiro Lampião, próximo e bem relacionado com a aristocracia sertaneja mais poderosa ou chamado à ajuda em preces pelos fiéis mais miseráveis da região. Diziam que era explorador de fé, era acreditado como "enviado" pelos romeiros.

Foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, em 1911, cargo que ocupou por 15 anos seguidos. Também foi nomeado vice-presidente do Ceará e deputado federal. Por conta da saúde debilitada, não assumiu a vaga no legislativo federal com a morte de Floro Bartolomeu. Dividiu-se entre conceder suas bênçãos e uma agenda permanente com gente influente. A Igreja não concordava com ambas as atuações, mesmo ele proibido das funções eclesiais.


O fenômeno da hóstia.

Ao mesmo tempo, Padre Cícero foi protagonista da longa polêmica que viajou do Juazeiro do Norte até o Vaticano: o controvertido evento da Hóstia Consagrada que virou sangue na boca da beata Maria de Araújo. Tratado como milagre ou tachado como embuste, o Padim estava no epicentro do problema. A primeira vez do fenômeno se deu em 1º de março de 1889, durante uma missa celebrada por ele. O fato completou 130 anos.

Até a Semana Santa daquele ano, Renato Casimiro descreve que foram mais 103 vezes do mesmo evento, sem causa nem explicação palpáveis, sempre durante o momento da comunhão da missa. A jovem Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo tinha 28 anos à época. Era pobre, negra, analfabeta, costureira de profissão e, na saúde, sofria ataques de epilepsia. Na infância, teve meningite e passou por crises de espasmos. Sua vida era de jejum e orações. Vivia desde adolescente na casa do Padre Cícero.


“Depois disso (do episódio da hóstia), ela foi levada a ser reclusa na Casa de Caridade do Crato, afastada portanto de Juazeiro”, conta. Maria de Araújo nunca mais foi vista publicamente. Morreu com 52 anos, em janeiro de 1914. Seu túmulo foi violado 16 anos depois do enterro. Ela havia sido sepultada no cemitério da Capela do Socorro, mas um monsenhor local, Vicente Sóter de Alencar, ordenou a retirada dos restos mortais alegando que o lugar era sagrado e ela seria "impura". Nunca foram reencontrados. A Igreja falava mal de Maria. Para a diocese do Ceará, a omissão de Padre Cícero sobre aqueles fatos foi imperdoável.

Linha do tempo:

1

24 de março de 1844

Em, Crato, nasce Cícero Romão Batista
2
1854
Criação da Diocese do Crato
3
1856
Passa a frequentar a Escola do padre João Marrocos, seu primeiro professor de latim
4
1860
Estudante no regime de internato no colégio Padre Rolim, em Cajazeiras (PB)
5
1861
Dom Luís Antônio dos Santos é nomeado o primeiro bispo do Ceará
6
1862
Com a morte do pai, Joaquim Romão Batista, Cícero deixa os estudos na Paraíba e volta para ajudar a mãe e as irmãs
7
1865

Cícero (à direita) deixa o Crato e vai estudar em Fortaleza, no Seminário Diocesano. A foto é da época de seminarista

Cícero (à direita) deixa o Crato e vai estudar em Fortaleza, no Seminário Diocesano. A foto é da época de seminarista
8
1870
Em 30 de novembro, é ordenado padre e, no ano seguinte, retorna ao Crato
9
1871
No ano seguinte à ordenação, atuou na paróquia do Trairi por alguns meses. Foi para regularizar sacramentos (batismos, casamentos) a pedido do então bispo do Ceará, dom Luis Antônio dos Santos
10
1872
Após rezar a missa do Natal no arraial de Juazeiro, permanece em definitivo na localidade
11
1883
Dom Joaquim José Vieira assume como o segundo bispo do Ceará
12
1885
Na capela de Nossa Senhora das Dores, funda as Conferências Vicentinas
13
1887
Foi nomeado para a paróquia de Caririaçu em 21 de dezembro, até 1892, quando foi suspenso. Foi a única em que ele foi vigário. Permaneceu, porém, residindo em Juazeiro do Norte
14
1888
Funda o Apostolado da Oração
15
1º de março de 1889
Durante comunhão na capela de Nossa Senhora das Dores, a hóstia transforma-se em sangue na boca da beata Maria de Araújo. O dito milagre se repete 104 vezes nas celebrações da Semana Santa, em Juazeiro
16
1891
É instalada a primeira comissão para averiguar o "milagre da hóstia"
17
1892
A segunda comissão é instalada em abril e, em agosto, o Padre Cícero é suspenso de pregações, confissões e impedido de orientar os fiéis
18
1893
Uma carta pastoral é emitida por Dom Joaquim, desacreditando os fatos de Juazeiro
19
1894
O Santo Ofício Romano julga que o milagre seria uma farsa
20
1896
Padre Cícero é proibido de celebrar missas
21
1897
Roma ordena que o padre Cícero deixe Juazeiro e ele vai para Pernambuco
22
1898
No início de janeiro, padre Cícero viaja a Roma para trabalhar pessoalmente sua defesa. Permanece lá até outubro. Volta se declarando absolvido, mas a punição continuou
23
1908
O médico baiano Floro Bartolomeu, seu principal aliado político, chega a Juazeiro
24
22 de julho de 1911
O médico baiano Floro Bartolomeu, seu principal aliado político, chega a Juazeiro
25
1912
Além da gestão municipal, Padre Cícero passa também a ocupar a vice-presidência do Ceará
26
1914
Ano da Sedição de Juazeiro
27
1916
Padre Cícero recupera, momentaneamente, o direito de celebrar missas
28
1921
Volta a ser suspenso pela Igreja
29
1926
Floro Bartolomeu morre e, em seu lugar, Padre Cícero é eleito deputado federal, mas não assume o cargo
30
18 de fevereiro de 1931
No O POVO, é publicada sua última entrevista, concedida aos jornalistas Paulo Sarasate e Alpheu Aboim
31
20 de julho de 1934

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