85 anos após
sua morte, Padre Cícero é revisto pela Igreja Católica. A devoção dos romeiros
ao sacerdote segue intocada. Desta quarta-feira, até sábado, dia 20, está
programada romaria para celebrar a memória de fé. No dia em que morreu, mesmo
enfraquecido e já devotado, chegou a abençoar os fiéis
Por Cláudio Ribeiro
As notícias sinalizavam que algo mais triste estava por vir,
a partir das mensagens por telegramas enviados do Cariri, repassadas no dia
anterior:
- “Crato, 19 - Padre Cícero muito mal”,
- “Joazeiro, 19 - Padre Cícero estado grave".
Na manhã de 20 de julho daquele 1934, a confirmação:
- "Joazeiro, 20 - 8hs.,45. Acaba de falecer padre
Cícero. Povo em desespêro. Mandarei pormenores", alertou pelo telégrafo um
colaborador chamado Jesus Rodrigues.
Partira do plano terreno, do chão dos romeiros, o sacerdote
milagreiro do Nordeste, de fama que o vento espalhava além-sertão, muito
além. Mesmo sem o endosso oficial do Vaticano, Padim Ciço já há muito é tido
como um santo nos altares domiciliares - talvez já fosse ainda em vida. Igrejas
e capelinhas da Região não fazem diferentes, apesar da ordem superior não ter
sido dada.
Sobre o assunto:
Vespertino àquela época, O POVO ainda conseguiu, no calor
dos fatos, estampar a informação na sua primeira página, naquela sexta-feira:
"O falecimento do Padre Cícero: profunda consternação em Joazeiro".
Foi o título, com a fotinha de rosto do religioso ilustrando a matéria. Sem
mais detalhes apurados, e para não atrasar a edição, o texto se completou com
dados biográficos do Padre. Também informado por telegrama, o final dizia:
"Apesar profundo sentimento povo calmo".
Saiu logo abaixo da manchete principal: Getúlio Vargas
tomaria posse naquela mesma tarde como presidente, eleito indiretamente, da
então República dos Estados Unidos do Brasil. Faz 85 anos que a notícia da
morte do Padim correu as ruas e conversas, mas ainda tem força e repercute.
Ele morreu 85 anos atrás, suspenso de todas as atividades de
sacerdote. A motivação foi episódio ocorrido 130 anos atrás. Hoje,
a Igreja conduz em sigilo o processo para reabilitá-lo (SAIBA MAIS NESTE LINK).
O Vaticano reúne materialidades e entendimentos sobre o trabalho sacerdotal, a
atenção aos romeiros e avida de fé. Está próxima o que pode ser a reconciliação
entre ele a Igreja. Mais que isso, há perspectiva de ele ser reconhecido como
um servo de Deus. É o passo anterior a se tornar venerável. Daí pode se tornar
beato, até chegar ser canonizado - estes dois últimos postos dependentes de
milagres atribuídos.
Nesta semana, desta quarta-feira (17) até sábado (20), está
programada a romaria que marca as oito décadas e meia do falecimento do Padre
Cícero. A agenda religiosa, com celebrações diárias, será fechada com a missa
do dia 20 (tradicional a cada mês), na Capela de Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro. É lá que foram enterrados seus restos mortais.
Uma programação maior, que deverá durar de novembro deste
ano a novembro do ano que vem, está sendo formatada pela Diocese do Crato,
através de uma comissão organizadora, para marcar, em 2020, os 150 anos da
ordenação de Cícero Romão Batista como padre. Ele foi seminarista em Fortaleza
a partir de 1865 e se ordenou em 1870. Haverá um simpósio internacional para
discutir a nova imagem de Padre Cícero, agora sendo analisada num processo de
reabilitação conduzido pelo Vaticano.
Velório arrastou multidão
Cícero tinha 90 anos e quatro meses de idade quando morreu.
Viveu intensamente, pode-se afirmar. A figura emblemática era o homem de batina
e cajado, baixa estatura, pescoço curto e cabeça protuberante. Inofensivo na
aparência, mas muito carismático e forte no posicionamento. Foi seminarista em
Fortaleza e ordenado na Igreja Católica em 1870, mas afastado de sua atividade
sacerdotal em 1892. Porque se envolvera na polêmica de um milagre não reconhecido
pelos senhores bispos e cardeais, o da hóstia que virou sangue. O episódio
incomodou do Alto Clero local aos graduados da Cúria Romana. Cícero teria
omitido a informação aos seus superiores. O papa era Leão XIII. A diocese do
Ceará era chefiada por dom Joaquim José Vieira. O Crato só teria diocese em
1917.
Clique na imagem
As ordens sacerdotais de Cícero foram suspensas, mas ele
nunca foi excomungado - como se comentou por muitos anos entre fiéis e livros.
Uma carta com esse teor mais severo, indicando de fato a excomunhão, chegou a
ser remetida de Roma para o Ceará, nos anos 1920. Nessa época, o bispo do Crato
era dom Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva, então vigário à época do
"milagre".
"Quando a carta chegou aqui, dom Quintino apresentou a
correspondência ao Floro Bartolomeu (médico baiano, residente em Juazeiro desde
1908 e parceiro de padre Cícero na política), que era muito truculento. E ele
disse que não sabia o que iria acontecer com a vida do Padre Cícero se a carta
fosse mostrada. 'É capaz de ele morrer'. O bispo foi pedir ao Floro para que
apresentasse a excomunhão. Mas (a ordem) era do tipo que se não fosse
comunicada ela não existiria", descreve o professor e pesquisador Renato
Casimiro, um dos principais estudiosos da vida do Padre Cícero. Não foi
validada porque nunca foi apresentada.
Interditado, nunca se desfez do tratamento de padre - o
título juntou-se a Cícero e tornou-se um nome composto. Cícero era
ouvido e seguido por muita gente. Já bem antes de ser rezado e devotado como
hoje. Foi o mediador ou personagem direto de conflitos e acordos políticos e
querelas policiais, amigo de jagunços e do cangaceiro Lampião, próximo e bem
relacionado com a aristocracia sertaneja mais poderosa ou chamado à ajuda em
preces pelos fiéis mais miseráveis da região. Diziam que era explorador de fé,
era acreditado como "enviado" pelos romeiros.
Foi o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, em 1911, cargo
que ocupou por 15 anos seguidos. Também foi nomeado vice-presidente do Ceará e
deputado federal. Por conta da saúde debilitada, não assumiu a vaga no
legislativo federal com a morte de Floro Bartolomeu. Dividiu-se entre conceder
suas bênçãos e uma agenda permanente com gente influente. A Igreja não
concordava com ambas as atuações, mesmo ele proibido das funções eclesiais.
A ÚLTIMA BÊNÇÃO | "No
céu, pedirei a Deus por vocês todos"
O fenômeno da hóstia.
Ao mesmo tempo, Padre Cícero foi protagonista da longa
polêmica que viajou do Juazeiro do Norte até o Vaticano: o controvertido evento
da Hóstia Consagrada que virou sangue na boca da beata Maria de Araújo.
Tratado como milagre ou tachado como embuste, o Padim estava no epicentro do
problema. A primeira vez do fenômeno se deu em 1º de março de 1889, durante uma
missa celebrada por ele. O fato completou 130 anos.
Até a Semana Santa daquele ano, Renato Casimiro descreve que
foram mais 103 vezes do mesmo evento, sem causa nem explicação palpáveis,
sempre durante o momento da comunhão da missa. A jovem Maria Magdalena do
Espírito Santo de Araújo tinha 28 anos à época. Era pobre, negra, analfabeta,
costureira de profissão e, na saúde, sofria ataques de epilepsia. Na infância,
teve meningite e passou por crises de espasmos. Sua vida era de jejum e
orações. Vivia desde adolescente na casa do Padre Cícero.
ARTIGO | Padre
Cícero continua vivo!
“Depois disso (do episódio da hóstia), ela foi levada a ser
reclusa na Casa de Caridade do Crato, afastada portanto de Juazeiro”, conta.
Maria de Araújo nunca mais foi vista publicamente. Morreu com 52 anos, em
janeiro de 1914. Seu túmulo foi violado 16 anos depois do enterro. Ela havia
sido sepultada no cemitério da Capela do Socorro, mas um monsenhor local,
Vicente Sóter de Alencar, ordenou a retirada dos restos mortais alegando que o
lugar era sagrado e ela seria "impura". Nunca foram reencontrados. A
Igreja falava mal de Maria. Para a diocese do Ceará, a omissão de Padre Cícero
sobre aqueles fatos foi imperdoável.
Linha do tempo:
1
24 de março de
1844
Em, Crato,
nasce Cícero Romão Batista
2
1854
Criação da
Diocese do Crato
3
1856
Passa a
frequentar a Escola do padre João Marrocos, seu primeiro professor de latim
4
1860
Estudante no
regime de internato no colégio Padre Rolim, em Cajazeiras (PB)
5
1861
Dom Luís
Antônio dos Santos é nomeado o primeiro bispo do Ceará
6
1862
Com a morte do
pai, Joaquim Romão Batista, Cícero deixa os estudos na Paraíba e volta para
ajudar a mãe e as irmãs
7
1865
Cícero (à
direita) deixa o Crato e vai estudar em Fortaleza, no Seminário Diocesano. A
foto é da época de seminarista
Cícero
(à direita) deixa o Crato e vai estudar em Fortaleza, no Seminário Diocesano. A
foto é da época de seminarista
8
1870
Em 30 de
novembro, é ordenado padre e, no ano seguinte, retorna ao Crato
9
1871
No ano
seguinte à ordenação, atuou na paróquia do Trairi por alguns meses. Foi para
regularizar sacramentos (batismos, casamentos) a pedido do então bispo do
Ceará, dom Luis Antônio dos Santos
10
1872
Após rezar a
missa do Natal no arraial de Juazeiro, permanece em definitivo na localidade
11
1883
Dom Joaquim
José Vieira assume como o segundo bispo do Ceará
12
1885
Na capela de
Nossa Senhora das Dores, funda as Conferências Vicentinas
13
1887
Foi nomeado
para a paróquia de Caririaçu em 21 de dezembro, até 1892, quando foi suspenso.
Foi a única em que ele foi vigário. Permaneceu, porém, residindo em Juazeiro do
Norte
14
1888
Funda o
Apostolado da Oração
15
1º de março de
1889
Durante
comunhão na capela de Nossa Senhora das Dores, a hóstia transforma-se em sangue
na boca da beata Maria de Araújo. O dito milagre se repete 104 vezes nas
celebrações da Semana Santa, em Juazeiro
16
1891
É instalada a
primeira comissão para averiguar o "milagre da hóstia"
17
1892
A segunda
comissão é instalada em abril e, em agosto, o Padre Cícero é suspenso de
pregações, confissões e impedido de orientar os fiéis
18
1893
Uma carta
pastoral é emitida por Dom Joaquim, desacreditando os fatos de Juazeiro
19
1894
O Santo Ofício
Romano julga que o milagre seria uma farsa
20
1896
Padre Cícero é
proibido de celebrar missas
21
1897
Roma ordena
que o padre Cícero deixe Juazeiro e ele vai para Pernambuco
22
1898
No início de
janeiro, padre Cícero viaja a Roma para trabalhar pessoalmente sua defesa.
Permanece lá até outubro. Volta se declarando absolvido, mas a punição
continuou
23
1908
O médico
baiano Floro Bartolomeu, seu principal aliado político, chega a Juazeiro
24
22 de julho de
1911
O médico
baiano Floro Bartolomeu, seu principal aliado político, chega a Juazeiro
25
1912
Além da gestão
municipal, Padre Cícero passa também a ocupar a vice-presidência do Ceará
26
1914
Ano da Sedição
de Juazeiro
27
1916
Padre Cícero
recupera, momentaneamente, o direito de celebrar missas
28
1921
Volta a ser
suspenso pela Igreja
29
1926
Floro
Bartolomeu morre e, em seu lugar, Padre Cícero é eleito deputado federal, mas
não assume o cargo
30
18 de
fevereiro de 1931
No O POVO, é
publicada sua última entrevista, concedida aos jornalistas Paulo Sarasate e
Alpheu Aboim
31
20 de julho de
1934
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