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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A MORTE DE LAMPIÃO

Por: Antonio Amaury C. Araujo

O sertão já havia perdido a esperança de que aquele fato um dia viesse a acontecer... Lampião é o Satanás, não morre nunca! Diziam uns. É um enfeitiçado, não tem bala que o acerte! Diziam outros...
Mas, um dia aconteceu. E foi o fim do cangaço.
Vejamos as belas páginas escritas por Antonio Amaury C. Araujo:
"Angico!
Esse é o momento culminante na história do cangaço. Todos aqueles que de uma forma ou de outra, participaram dos fatos que levaram ao combate viveram o momento que marcou o princípio do fim de uma forma de vida que subsistiu nos sertões nordestinos. Por mais de cem anos.
Por mais de um século?
Talvez, essa seja a pergunta cheia de surpresa do nosso leitor. Mais de um século sim, se levarmos em conta, as lutas do grupo familiar formado pelo Cabeleira, seu pai e outros que o acompanhavam. A morte de Lampião, em Angico, foi o dobre de finados do mundo dos cangaceiros. A agonia do cangaço começou nesse dia.
Nossos biografados, Sila e Zé Sereno, estiveram presentes e conseguiram sobreviver para contarem como foi a luta naquele amanhecer sangrento. Não só esse casal, outros que estavam também no coito de Angico, conseguiram escapar ao sinistro chamado da morte configurado materialmente nos disparos feitos por fuzis e metralhadoras. Criança e Dulce, Juriti e Maria além dos vários cabras que saíram dali com rapidez de veado baleado, são testemunhas incontestes do que ocorreu naquele distante amanhecer do dia 28 de julho de 1938.
E não são só os cangaceiros que têm o que contar. Os soldados da volante do tenente João Bezerra ( promovido a capitão nesse mesmo dia) também são uma imprescindível fonte de informações. Escrevemos um livro, "Assim morreu Lampião" que foi levado ao prelo em sua terceira edição pela Traço Editora e no qual damos todos os informes sobre tudo o que ocorreu naquele pedaço do sertão nordestino.
Aqui vamos narrar somente o que nos contaram Sila e Zé Sereno. Sobre o que sentiram, o que pensaram, o que fizeram, como agiram e o que sofreram. Isso tanto nos dias que precederam o combate como no dia em que se feriu o mesmo.
O palco onde se desenvolveu o sangrento reencontro está localizado a uns dois mil metros da margem do rio São Francisco, em terras da fazenda Angico. Esta fazenda, naqueles tempos de bandos de cangaceiros e de forças volantes, fazia parte do Município Ribeirinho de Porto da Folha. Sereno estava numa ascensão vertiginosa em sua carreira de cangaceiro e estava chefiando um grupo numeroso e aguerrido. Seu nome ganhava evidência dia a dia, quer nos meios cangaceiros quer dentre as forças volantes contra as quais lutava. Vamos transcrever aqui o que contou-nos Zé Sereno nas dezenas e dezenas de vezes em que conversamos com o mesmo. Nas visitas que lhe fazíamos em suas diversas moradias na cidade de São Paulo, bem como nas prolongadas internações no Hospital Municipal de São Paulo.
Sua companheira Sila, igualmente, em várias oportunidades narrou-nos como foi o tiroteio de Angico e de como conseguiu escapar da morte. Tem a lamentar com sentidas lágrimas a perda, nesse combate, de seu irmão Gumercindo que no cangaço ganhara o vulgo de Mergulhão.
Sereno contou-nos que recebera um recado de Lampião, trazido por um coiteiro de confiança, cujo nome era Eráclito, morador de uma das fazendas do coronel Antonio Caixeiro. O recado dizia onde deveriam encontrar-se e quando. Pouco depois de receber o recado, o grupo de Sereno seguiu para o local do encontro e chegaram na casa de dona Cândida a tardinha. Quando chegaram na fazenda, o pessoal de Lampião já se encontrava lá, um pouco distante da casa e descansando sob umas quixabeiras, que foi para onde Sereno e seus cabras se dirigiram incontinente.
Cumprimentaram-se rapidamente e depois todos seguiram para a grota do riacho onde armaram as tordas. Sereno perguntou a Lampião:
- Capitão, quem trouxe o senhor aqui?
O chefe mor dos cangaceiros respondeu:
Pedro de Cândida. Por quê?
Num tenho confiança im Pedro de Cândida.
Ao autor destas linhas, Zé Sereno confessou que não gostava daquele lugar e que tinha desconfiança do coiteiro. O filho de dona Cândida, que era popularmente conhecido como Pedro de Cândida, morava do outro lado do rio, exatamente em frente às terras da fazenda Angico. Dormiram essa noite com toda tranquilidade. Mal o dia 27 de julho amanheceu, e Zé Sereno já estava falando com Lampião que deviam deixar aquele lugar. Lampião recebera, a coisa de uns três dias, um sobrinho, José, filho de sua irmã Virtuosa e pediu a Sila que costurasse um uniforme de cangaceiro para o mesmo. O rapaz, nesse tempo, contava com 17 anos de idade. Foi incumbido o coiteiro de trazer uma máquina de costura. Sua mãe tinha uma dessas de mão (que eram comuns naquela época) e ele trouxe para o coito e Sila começou a fazer a roupa. Esse fato, aliás, veio novamente à tona ao conversarmos com Sila e chegamos a conclusão de que cai então por terra a tese de alguns de que Lampião queria abandonar o cangaço.
Se em verdade, esta era a idéia dos chefes dos cangaceiros ele não iria permitir que o seu sobrinho fosse investido como cangaceiro. Com roupas, armas e tudo o mais que transforma um sertanejo qualquer em um guerreiro das caatingas. Quando foi à tarde, o coiteiro Pedro de Cândida trouxe as compras em um jegue e disse:
- Capitão, as compra tão aqui. Vamu acertá as conta Qui eu quero saí.
Fizeram as contas e depois, quando Pedro ia saindo, ele passou por Sereno e perguntou:
- Quantos são?
Sereno respondeu:
Num interessa. Por que qué sabê?
As incumendas podi di num dá. – respondeu Pedro de Cândida desculpando-se.
Num interessa di sabê. – disse Sereno que não confiava e nem gostava desse coiteiro.
Depois que Pedro foi embora, o cangaceiro foi vistoriar as compras. Pegou uma garrafa de conhaque e viu, quase imperceptível um furinho no estanho que selava a rolha da garrafa. O furo deixado por uma agulha hipodérmica.
Zé Sereno levou a garrafa a Lampião e disse:
"Seo" Capitão, o sinhô é cego de uma vista mais cum a outra inxerga até dimais. Olha prá Qui. Mostrou o furo por onde tinham injetado o veneno.
É mesmo, disse Lampião, i o resto das incomenda?
Tá tudo invenenado, menos a cachaça qui Pedro sabia qui ia tê di prová, respondeu Zé Sereno e continuou:
É bom nóis sai daqui si não nóis vamu se cuberto di bala.
Amanhã cedo nóis sai, disse Lampião.
Sai é, nóis vai sair é cum bala, retrucou Sereno.
Ficou ali pelo acampamento, preocupado.
Maria Bonita teve uma discussão com Lampião e como ficou nervosa convidou Sila para irem sentar-se sobre umas pedras. Conversaram bastante tempo. A escuridão da noite as envolvia e somente se avistava os pontos vermelhos dos cigarros que as duas fumavam. Quando Maria queixou-se de Lampião, dizendo que o cego não morria e que ela, Maria, não tinha receio da força alagoana, a companheira de conversa respondeu:
- Eu não tenho medo da força de Sergipe, tenho até parentes lá, esses eu não temo.
Em dado momento, Sila viu luzes piscando à distância, acendendo e apagando e falou:
- Olha Maria, num é luz di palha? (lanterna)
Maria Bonita preocupada com seus pensamentos, respondeu que não era nada de mais, só vagalumes no mato. Já seriam mais de 21:00 h quando foram para as barracas dormir. Sila não falou nada para Zé Sereno que estava dormindo. Durante a noite, Sereno acordou com o barulho de um jumento que havia se assustado com os soldados que avançavam. Sonolento ficou prestando atenção para ouvir se os cachorros davam o alarme. Nenhum cachorro latiu. Tudo continuou em silêncio. Como não escutou mais nada, o cangaceiro tornou a recostar-se e dormiu, novamente. Lá pelas cinco horas, Zé Sereno acordou e foi rezar o Santo Ofício com o Rei do Cangaço, depois retornou e acordou seus cabras dizendo:
- Acorda e vamu tomá banho no poço.
Havia um "caldeirão" de água numa lage de pedra. Sereno desceu até onde estava Luís Pedro e disse-lhe:
Cumpadre se equipe.
Qui é isso, tá assombrado?, respondeu o outro.
Assombrado? Você vai vê daqui a pouco.
Luís Pedro começou a equipar-se e Sereno caminhou até onde Lampião estava calçando a alpercata do pé esquerdo e foi quando ouviram-se os primeiros tiros. Ao passar por Lampião, Sereno disse-lhe:
Num disse qui nóis brigava hoje?
Vamo brigá, respondeu e alto para os outros cabras: Oh, mininos, descem aí uns di voceis pro riacho.
Quando Zé Sereno percebeu já tinha tirado três pentes de bala de fuzil. Viu quando o tenente João Bezerra avançava em direção às barracas de seu grupo. Atirou. Ao ser baleado, o tenente caiu. O cangaceiro gritou:
- Perdeu a fama macaco fio da puta.
Olhou para trás e viu Lampião caído por terra, morto. No fuzil ainda tinha duas balas, uma na agulha e outra no pente. O dia estava clareando, mas ali na grota a fumaça dos tiros misturando-se com a neblina do dia mal permitia que visse alguns passos adiante.
Na cabeça Sereno trazia um chapéu de massa, semelhante aos usados pela polícia. Foi sua sorte. Sem poder subir pelos barrancos laterais ele foi adiantando-se pelo leito seco do riacho e, de repente, encontrou-se com os soldados do aspirante Ferreira que vinham em sentido contrário. Como se sabe, os trajes da polícia, quando em diligências pela caatinga, e o dos cangaceiros eram quase iguais, variavam, às vezes, só nos chapéus ou quepes. Sem outra saída usou de um estratagema, levantou o braço esquerdo e com a mão espalmada, gritou várias vezes:
É cumpanheiro, é cumpanheiro, num atiri qui é cumpanheiro.
Na mão direita levava o fuzil, foi avançando pelo meio da fumaça, da neblina e das sombras e passou pelos soldados. Viu um varedo de bode, no meio do xique-xique e da macambira, que descia pela ribanceira. Antes de descer pelo mesmo virou-se de súbito e deu os dois tiros de fuzil em direção aos soldados. Rapidamente sacou do parabellum e deu toda a carga nos policiais surpresos e correndo e saltando desceu pelo trilho. Foi assim que Zé Sereno conseguiu escapar do cerco e da morte certa.
Com sua companheira Sila aconteceu o seguinte. Ela ainda estava na barraca quando dos primeiros tiros, pegou os bornais e saiu. Ouviu o barulho das metralhadoras que mais pareciam latas cheias de pedra sendo sacudidas violentamente. Seu irmão Mergulhão estava atirando ali perto. Quando ele foi baleado mortalmente, ela pegou o fuzil dele e escondeu-se atrás de um pedra. Escutou os soldados que a chamavam:
Vem prá cá, vem aqui.
Nisso, Criança e Dulce passaram por ali e o cangaceiro chamou-a:
Cumadri Sila, Cumadre Sila.
Ela saiu de onde estava e seguiu o casal. Tinham andado somente alguns metros quando viram Candieiro atirando. Ao chegarem perto, ele foi atingido no braço direito, o fuzil caiu e Sila apanhou-o do chão e levou-o também. A mulher de Cajazeiras, Enedina, juntou-se ao grupo que fugia. Ia caminhando atrás de Sila quando uma bala atingiu-a no alto do frontal, o osso levantou-se e a massa encefálica foi atirada nas costas de Sila, ficando grudada em sua roupa. Depois que estavam distantes do lugar do tiroteio e o silêncio dizia que o mesmo terminara. Sila disse para Criança:
- Olha, eu acho que só escapou nóis. O resto deve ter morrido tudo.
Mais tarde, ouviram os disparos de um parabellum.
Criança falou:
Isso é bem cumpadre Sereno. Vamo até lá.
Realmente, Sereno disparara a carga do parabellum com a finalidade de avisar aos companheiros o ponto onde estava. Chegaram onde estava Sereno e, aos poucos, outros sobreviventes foram se agrupando. Alguns vinham feridos, como Candieiro e Balão que tiveram que ser tratados. Falavam dos que tinham visto cair mortos e contavam uns aos outros de como haviam escapado às garras da morte. Estavam todos aparvalhados, desorientados, com medo e sem saberem que atitude tomar agora que perderam o chefe. Zé Sereno foi quem primeiro se refez. Começou a tomar as providências e assumiu o comando."
(Texto transcrito da obra Sila e Zé Sereno/Antonio Amaury C. Araujo/Traço Editora).
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