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domingo, 31 de março de 2013

Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: Revisão da historiografia sobre o banditismo social na América Latina Parte 1

Por: Norberto Ferreras

O Banditismo Social é uma temática recorrente nas sociedades com forte presença rural, como na América Latina. As literaturas nacionais da região apresentam referências aos tipos rurais e, entre estes, os camponeses revoltados, de forma individual ou coletiva. Entre estas duas formas de resistência, os literatos do século XIX preferiram a individual como modelo. Esses indivíduos revoltados foram a base da construção de arquétipos e, aposteriori, a base de modelos na construção da identidade nacional. Tanto o romantismo quanto o liberalismo analisaram este tipo social como a base da nacionalidade: pessoas violentas lutando contra o irreversível avanço da modernidade, identificadas com os valores patriarcais tradicionais e associadas à liberdade absoluta do bom selvagem.
  
Se analisarmos a América Latina segundo fatores étnicos, teremos que a presença das etnias autóctones pesou na hora da definição do caráter dos homens do campo. Nos locais em que predominaram os indígenas e os escravos, os brancos descendentes de espanhóis, colocaram-se como modelo, como aconteceu no México, Chile e Peru, por exemplo. Os indígenas foram menosprezados pela falta de aceitação da cultura européia. Nas regiões em que os indígenas não eram o elemento principal da população e, portanto, onde o perigo da miscigenação foi menor, o criollo americanizado foi o elemento principal na conformação de uma identidade nacional, de forma positiva ou negativa, como na Argentina.

Desde a década de 1960, as aproximações da História Social ao fenômeno do Banditismo Social estiveram fortemente marcadas pelos estudos desenvolvidos por Eric Hobsbawm. Fernand Braudel tinha feito alguns avanços nesta questão, porém, só quando Eric Hobsbawm publicou Primitive Rebels, em 1959, e Bandits em 1969, o Banditismo Social, como uma forma de resistência camponesa, passou a fazer parte do elenco temático da História Social. Este modelo de análise foi aplicado largamente a distintas realidades e situações, com maior ou menor êxito. Desde o início, este é um tema que aparece como necessariamente comparativo e não restrito a um período histórico e, outrossim, a uma determinada situação histórica.

Segundo Hobsbawm, o Banditismo Social é um fenômeno universal, dado que os camponeses teriam todos eles um modo de vida similar, definido pelo acesso direto à terra e a uma série de recursos naturais e de reciprocidades costumeiras na comunidade; por isto, o Banditismo Social não tem um período definido numa cronologia unívoca. Conforme Hobsbawm, a transição para o capitalismo agrário não acontece num momento histórico específico e depende do momento em que se produz essa transição. Nos países desenvolvidos, esta passagem aconteceu no século XVIII, enquanto nas sociedades da América Latina, no século XX. O momento em que começa o Banditismo Social pode não estar muito bem definido, mas está associado à desintegração da sociedade tribal ou à ruptura da sociedade familiar. É evidente que o Banditismo Social acaba com a difusão do capitalismo industrial e com a consolidação do Estado Nacional, estando relacionado à emergência das classes, e da luta de classes que dão uma nova orientação às lutas dos camponeses.


A análise de Hobsbawm baseia-se na existência de três tipos de bandidos: o bandido nobre, como Robin Hood; os guerrilheiros primitivos; e o vingador, como Lampião. Estas formas diferem segundo as regiões em que o Banditismo Social se desenvolveu, e que não devem ser confundidas com as práticas de comunidades que têm no crime uma forma de vida não diretamente relacionada com a transição para o capitalismo. Se os bandidos alcançam uma certa notoriedade — e em outros locais não temos registros destes grupos —, isto se deve à influência de alguns fatores, como as crises políticas e econômicas da região, as estruturas do poder local e o poder dos proprietários.

O que faz com que estes movimentos de camponeses continuem a ser mais uma das formas de expressão de descontentamento, ou se transformem em movimentos revolucionários, depende de fatores externos. Estes fatores estão relacionados com crises do tipo estruturais, que podem ser provocadas por catástrofes naturais ou por fenômenos irreversíveis, como a emergência do capitalismo. De acordo com Hobsbawm, é nestas ocasiões que o Banditismo Social pode passar a vincular-se a movimentos revolucionários, ou a aceitar a liderança de líderes revolucionários.

Outros dois elementos do modelo de Hobsbawm merecem ser lembrados. Primeiro, temos que destacar a capacidade que seu modelo tem para definir quem estava apto a integrar-se aos grupos de bandidos, o que é uma excelente análise da sociedade camponesa. Não é qualquer um que podia tornar-se um bandido. O bandido não podia ter relações familiares que o apressassem a poder ingressar nessa nova vida, e ao mesmo tempo a sua ligação familiar tinha que ser suficientemente forte para que, uma vez empreendida essa nova atividade, servisse para proteger ou favorecer seu grupo familiar. Em segundo lugar, para formular seu modelo, Hobsbawm baseou-se no folclore e nas narrativas dos feitos desses bandidos. Porém, estas narrativas apareceram reformuladas posteriormente ao desaparecimento dos bandidos, e adaptadas à novas situações.


Desde o momento em que Hobsbawm formulou a sua aproximação ao Banditismo Social, ele sofreu uma série de críticas sinalizando certas dificuldades. O primeiro a questioná-lo foi Anton Blok, especialista no assunto, que em 1972 mostrou as dificuldades existentes no modelo de Hobsbawm que pensava no banditismo como "social", e as simplificações a que foram submetidos os casos escolhidos para construir o modelo.Blok partiu das suas próprias pesquisas sobre o banditismo para dizer que Hobsbawm apelava a generalizações excessivas nas suas análises. O tipo de fontes utilizadas leva implícita uma avaliação positiva do fenômeno, romantizado pelos camponeses e por alguns pesquisadores. Outro questionamento diz respeito ao interesse pelo protesto social, antes que pelos casos em si, e desta forma acabam sendo silenciados outros aspectos da relação camponeses-bandidos, como a utilização da violência contra os camponeses. 

As fontes e o mito são centrais na análise de Hobsbawm e ambos são questionados por Blok. Blok asseverou que o Banditismo Social foi muitas vezes um banditismo anti-social, dado que os camponeses foram muitas vezes vítimas dos bandidos, preocupados primeiro em atender a seus vínculos com os poderosos locais, do que com os camponeses. O autor levantou uma agenda temática para aprofundar estes estudos, preferindo os casos ao modelo. Para isto sugeriu analisar o mundo rural como um todo, a fim de compreender as relações sociais existentes, o que tornaria mais compreensível a opção pelo banditismo. Anton Blok nos chama a atenção sobre as limitações do Banditismo Social para o desenvolvimento de formas coletivas de protesto, em virtude das possibilidades abertas às carreiras individuais.

Hobsbawm entendeu que as críticas de Blok não feriam seu modelo. De fato, em razão das críticas realizadas por Blok, Hobsbawm afirmou que o mito do Banditismo Social tinha que ser analisado, desconsiderando a base do argumento de Blok e reforçando sua posição. Hobsbawm continuou a ser a principal influência para estudos posteriores. O influxo das suas hipóteses tem se mostrado irresistível para as gerações seguintes de historiadores. Depois de alguns trabalhos que seguiram à risca as análises de Hobsbawm, apareceram algumas críticas em periódicos especializados: um destes estudos pode ser considerado como de transição, e Peter Singelmann publicou um artigo sobre cangaceirismo como Banditismo Social, que pretendia reforçar os argumentos de Hobsbawm no debate com Blok.Levantou questões próprias do modelo de Hobsbawm, principalmente no recrutamento do bandido. Mas as diferenças são importantes.


Singelmann não estava interessado no mito do Banditismo Social, mas nas implicações políticas do cangaceirismo, e para isto analisou a farta bibliografia sobre o coronelismo como sistema político e o cangaceirismo como uma forma de oposição ao mesmo. 

Simultaneamente, ele próprio estabeleceu uma continuidade entre cangaceirismo e coronelismo, como um caminho de mão dupla, fosse na rota da ascensão social, fosse no caminho à oposição política, forçado pela mudança de ventos na política nacional ou regional. 

As críticas mais fortes vieram poucos anos depois com as pesquisas de um outro grupo de historiadores. Em 1987 foi publicado nos Estados Unidos um livro que, em inglês, tinha o sugestivo título de Bandidos, em referência ao Bandits de Hobsbawm. Hobsbawm era a referência óbvia para este grupo, mesmo que fosse para interpelar as suas propostas. Richard Slatta, editor e autor, aceitou as dificuldades de lidar com o mito.Slatta na introdução apontou duas questões que mostravam uma importante diferença da proposta de Hobsbawm: as fontes e a importância das classes médias na construção do mito do banditismo. Sobre a primeira questão, este livro nos proporciona uma renovação importante, trazendo á tona o material produzi do pelas polícias regionais e pelo poder judiciário na perseguição aos bandidos. E quanto à segunda, a preocupação centrou-se nas interpretações que as classes médias urbanas fizeram do Banditismo Social.

Eric Hobsbawm

Os artigos deste livro preocuparam-se com a diversidade do Banditismo Social na América Latina, abordando os bandidos mexicanos do século dezenove, o cangaceirismo no nordeste do Brasil, o banditismo rural argentino e venezuelano, as relações entre banditismo e comunidades camponesas nos Andes. Este livro apresenta, ainda, outras aproximações como as recreações que Hollywood realizou dos bandidos e os estudos realizados pelos criminalistas latino-americanos.

Nas conclusões deste livro, Slatta afirma que é impossível falar de Banditismo Social na América Latina. Estas afirmações resultam da constatação de uma das premissas de Blok: as relações existentes entre os bandidos e as elites rurais regionais dificultam, decididamente, a possibilidade de que o bandido se torne um herói popular ou um defensor dos pobres. Slatta entende que seria preciso utilizar outra terminologia, como bandidos nas guerrilhas ou banditismo político. O banditismo, então, não seria um movimento pré-político, e sim um grupo com objetivos complexos, podendo ou não estar prontos a transformar a sociedade. Entre as motivações estariam a luta contra a opressão, mas também por benefícios pessoais. Os bandidos sociais certamente estariam interessados em si próprios, e alguns chegariam a ser aceitos novamente na sociedade civil sem maiores inconvenien tes. Os rasgos próprios do Banditismo Social, como a distribuição dos roubos entre os camponeses, seriam funcionais às necessidades dos bandidos, antes que um ato de reparação. 

Ante esses argumentos parece difícil continuar a analisar o Banditismo como Banditismo. Mas as reações à análise desse grupo de historiadores não demoraram, e as respostas geraram um intenso debate. O primeiro a se manifestar foi Gilbert Joseph, que não deixou de questionar as principais fontes desse grupo, as fontes oficiais, que acabam sendo parciais, remarcando certos aspectos do banditismo. Joseph também propôs reexaminar as relações sociais nas regiões rurais e as formas da resistência camponesa. Nem todo roubo é um ato de resistência, e ainda a resistência pode estar fora dos grupos de bandidos e em elementos do cotidiano, como pequenos furtos ou apropriações de elementos das classes proprietárias. Estas formas de luta contra os senhores locais mostram que os camponeses tiveram uma tendência ao compromisso maior do que a prevista, e que a baixa intensidade d os conflitos de classe permitem uma convivência relativamente pacífica. A proposta de Joseph retoma a necessidade de analisar o papel das classes médias na criação do mito do Banditismo Social. Ao mesmo tempo, expressa a necessidade de definir novamente o que é o Banditismo Social, em lugar de rejeitá-lo como propunha Slatta.


A resposta de Slatta e de outros foi rápida. No número seguinte da mesma revista, Slatta reafirmou as suas posições, mas admitiu a possibilidade de que os camponeses ajudassem os bandidos. Quando isto acontecia, o apoio era dado por causa das relações de parentesco, amizade ou vizinhança. Sobre a forma de definir o conceito de "Banditismo Social", Slatta optou por uma solução própria da história social, fugiu dos questionamentos foucaultianos de Joseph e partiu para o empirismo, fazendo uma análise de caso. Outro historiador que respondeu ao artigo de Joseph foi o já citado Peter Singelmann, defendendo as posições de Hobsbawm sem fazer outros aportes ou críticas a Joseph, e aparecendo mais receptivo que Slatta sobre a possibilidade de reexaminar o conceito de Banditismo Social.A tréplica de Joseph concentrou-se na necessidade de redefinir a terminologia e os conceitos aplicados à análise do Banditismo Social.

Os debates sobre esta questão não estão concluídos, porém têm sido raras as aproximações em que se tentou uma conceitualização desta temática. De alguma forma a posição de Slatta tem sido a predominante, e não só nestes estudos, a História Social parece ter privilegiado as abordagens empíricas e deixado a teoria de lado.

Continua...

Norberto O. Ferreras

Possui graduação em História - Universidad Nacional de Mar del Plata (1991),obteve o mestrado em História pela Universidade Federal Fluminense (1995) e o doutorado em História Social pela Universidade Estadual de Campinas (2001). Atualmente é Vice-Presidente da Associação Nacional de História - Seção Rio de Janeiro e professor associado I da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem experiência na área de História, com ênfase na História da América, atuando principalmente nos seguintes temas: Argentina, América Latina, Trabalho e Trabalhadores e Movimentos Sociais. 

FONTES:
 http://www.scielo.br
Revista História - Coordenação de Pós-Graduação em História
http://wm.imguol.com/v1/blank.gif
revistahistoria@unesp.br
http://cariricangaco.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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