Por Rangel Alves
da Costa*
Assento antigo
a cadeira do coronel. De remota madeira de lei, envernizada pelo tempo, na
varanda se balançando desde as andanças da chibata e do cuspe secando ao lado.
Dali partiu ordens para tocaias, emboscadas e mortes, no aprazamento até o
cuspe secar. Era esse o costume coronelista: ordenar e ter sua ordem cumprida
antes de o cuspe secar. E cuspia mesmo, até na cara do jagunço, do matador.
A cadeira de
balanço do coronel parecia fincada na pedra da varanda. Era de balanço, mas
permanecia imóvel quando o seu dono sentava nela. O dono do mundo não gostava
do vai e vem da madeira, eis que lhe parecia festeiro demais. Sentava o
traseiro ali e movia apenas a cabeça e as mãos. Gostava mesmo de ficar longo
tempo numa quietude de mármore, imóvel, lançando o olhar pelas vastidões de seu
mando. Mas o seu mundo de mando avançava por toda a região.
Casarão
antigo, construído por mãos negras marcadas pelos grilhões e com pedras
cimentadas pelo suor e sangue de um povo escravizado e tratado como bicho.
Construção secular, imensa, com paredes de quase um metro de espessura, muitos
e espaçosos aposentos, culminando com varandas na frente e nas laterais. Nos fundos
quartos fechados, cheios de armas, munições e apetrechos de selvagerias. E
assim nas duas gerações coronelistas que ali fincou moradia, poder e mando.
Nas sombras de
qualquer hora do dia, ainda que adiante se mostrasse um sol de fornalha, o
velho coronel aparecia na vaga da imensa porta da sala principal. Era ali
dentro onde recebia outros coronéis de mesma patente forjada na vindita de
sangue, convidados ilustres, jagunços e capangas, e de onde fazia emanar seu
poder. Mas poucos tinham encorajamento suficiente para surgir diante daquele
que havia se tornado em verdadeira lenda naquelas vastidões nordestinas.
O medo era
justificado, pois ninguém sabia como seria tratado, nem mesmo políticos e
poderosos da região. Mas fosse quem fosse, adentrando naquela porta era
recebido por um homem corpulento, de estatura mediana, vestindo sempre terno de
linho branco amarrotado, de chapéu largo, arma à mostra na cintura, e de
costas. Sim, de costas e com as mãos para trás e a cabeça voltada para um
enigmático objeto na parede: um pedaço de tronco com marcas de tiros e uns
respingos escurecidos. Era sangue.
De pouca
conversa e muita ordem, falava muito mais pelo olhar. O seu cabra de confiança,
o jagunço maior em quem confiava e a quem dera a chefia sobre os demais, sabia
muito bem traduzir aquele olhar, desde a mudança no brilho ao jeito como mirava
adiante. Conhecia o olhar odioso, mortal, feroz, quando o patrão sequer movia
as pálpebras. Com olhos fixos na distância, como se não houvesse ninguém ou
nada à sua frente, bastava dizer o nome. E o jagunço já sabia que era para
tocaiar e matar.
Com passos
lentos, no compasso da idade, caminhava em direção à velha cadeira. Mas não
sentava antes de andar um pouco mais até a divisa entre a varanda e as terras
que começavam no passo seguinte. Ao redor umas sete a oito casas onde permitia
a moradia de velhos trabalhadores, todos parentes dos escravos que noutros
tempos sustentaram os inícios da riqueza coronelista. Mas não permitia que
nenhum jagunço morasse ali. A jagunçada vivia enfurnada em toscas moradias
mataria adentro.
Mesmo não
morando ao lado do casarão, dia e noite jagunços mantinham uma impecável
vigilância. Quem chegasse perto do casarão sequer imaginava que estava sendo
vigiado pelos cantos, por trás dos tufos, nos escondidos de todo lugar. Certa
feita, o coronel recebeu a visita de um desafeto decidido a se ajoelhar diante
dele para ser perdoado. Foi recebido, prometeu reconhecer a primazia do coronel
em toda a região e deixou o local com um sorriso e um aperto de mão. Mas assim
que montou no alazão e passou da porteira foi acertado no meio da testa. Bastou
um tiro e o homem metido a poderoso tombou já morto. E assim aconteceu porque o
jagunço tinha avistado o sinal pra matar: o coronel apareceu na varanda e
desceu o chapéu até o peito. Era a senha da morte.
Alongava o
olhar pelos arredores, mirava de canto a outro, depois ia se espalhar na
cadeira. De vez em quando acenava ao sentar e logo um copo com cachaça pura lhe
chegava às mãos. Bebia de uma talagada só. Depois acendia um imenso charuto e
começava a soltar baforadas lentas. A essa altura o seu olhar já mirava
fixamente algum lugar nos arredores. Mas certamente não procurava enxergar
nada, pois somente a visão da mente ia percorrendo caminhos, rebuscando
memórias, encontrando visões do passado.
Viagem mental,
no pensamento, mas acaso um espelho pudesse surgir naqueles olhos sem brilho
certamente mostraria cenas e situações verdadeiramente espantosas. Ainda jovem,
apontando a arma e disparando contra um desvalido sertanejo rogando pela vida a
seus pés. Matou o coitado inocente para mostrar valentia ao pai. Ainda jovem,
rasgando a roupa de uma menina ali mesmo da fazenda numa brutalidade desmedida.
E depois aquele corpo infantil todo ensanguentado por cima do capim seco. E
quanta impassividade no olhar.
Avistava o seu
pai morto ali mesmo naquela cadeira. Depois de tantas atrocidades, ele mesmo
resolvera dar cabo à vida cometendo suicídio. Enxergava a face da esposa morta
ainda jovem e depois de tanto sofrer pelas suas mãos violentas. Ouvia o choro
daquelas tantas meninas estupradas e depois pisoteadas. E também o choro de
meninos que talvez fossem seus filhos. E sentia cheiro putrefato de sangue
velho, pisado, esquecido pelas veredas. E ouvia sons de tiros, gemidos, gritos
lancinantes. E via a morte por todo lugar. E os olhos continuavam impassíveis.
Um dia, num
entardecer, as mesmas imagens lhe chegando à mente. E agora mais
aterrorizantes. Viu-se apertando o gatilho em direção ao pai. Sim, não houve
suicídio algum. Ele era o assassino. Mas havia chegado o seu dia. E mais tarde
o velho coronel foi encontrado morto na sua cadeira de balanço. Um ataque
fulminante. Era a morte ajustando contas. E uma lágrima ainda parecia descer
daquele velho espelho sem luz.
Poeta e
cronista
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