Em uma
entrevista perguntaram a Davi Jurubeba, qual o momento mais difícil e marcante
que tivera nos confrontos com Lampião?
Davi
respondeu:
"- Foi no
tiroteio das Baixas - onde morreu meu irmão Olimpio - e o de um lugar
denominado Jacaré, onde constatei a bravura e resistência de Lampião, vendo a
hora eu e minha gente partir desse mundo pelas balas dos cangaceiros. Mas que
mesmo assim, botamos os bandidos para correrem".
Continua David
Jurubeba:
" - Fazia
um tempão que ninguém ouvia falar de Lampião. As noticias eram as mais
desencrontradas possíveis. Falar se falava, mas ver o homem mesmo, pra peitar,
isso não.
Até que um dia
ele apareceu de supetão, próximo a Nazaré, na fazenda Paus dos Leite, onde, no
momento, um prente meu, Pedro Tomáz, estava dando uns mergulhos no açude. O
coitado saiu na maior carreira, nú, debaixo de pilherias e galhofas dos
cangaceiros, em direção a Nazaré.
Ai se juntou
um punhado de homens armados, inclusive eu, Tomáz e seu pai, Tomáz Gregóorio.
Seguimos os rastros. Constatamos pelas pegadas serem quinze homens que rumaram
em direção da fazenda Baixas, uns doze quilômetros do povoado. Chegamos na
frente da casa da fazenda, nos posicionamos nos currais que ficavam depois do
grande terreiro.
Esperei um
pouco, nenhum movimento ou voz, aí gritei:
" -
Lampião, filho da puta!".
Aí foi tiro
pra todos os lados. Nós eramos apenas cinco. Mas mostramos que nazareno que se
preza, um vale por dez.
Enquanto a
gente amolegava o dedo no gatilho, gritava impropérios. Aí comecei a puxar um
assunto que apoquentava Lampião:
" - Lampião,
bem que Zé Saturnino dizia que você não é homem bosta nenhuma".
Menino, o
cabra ficou mais azedo ainda! Aí gritava mais alto:
" - Num
fale daquele cabra safado. Aquele sim, é um ladrão de bode, desordeiro e
mentiroso".
E tome bala.
Tome gritos. Desaforos. Já eram duas horas da tarde quando resolvemos cair fora
do local da luta. Estávamos com muita sede, pouca munição, os olhos ardendo com
o fedor e o fumaceiro da pólvora, e a vantagem era dos cangaceiros.
Eles, dentro
de casa, com mais homens. Nós, protegidos pela cerca do curral e com apenas
cinco nazarenos. Saímos de fininho. Um a um.
A certa
distância nos encontramos todos os companheiros no ponto previamente combinado
e íamos em direção a Nazaré, com muita fome e sede, mas com vontade de brigar.
De repente vimos chegando ao nosso encontro sete homens, eram eles: meu tio
Gomes Jurubeba, Manoel Flor, Manuel Jurubeba, Euclides Flor, Inocêncio, meu
irmão Olímpio e outro parente. Meu tio foi logo dizendo:
" - Vamos
brigar! "
Comemos uns
pedaços de queijos e rapadura. Tomamos bastante água. Reabastecemos as armas.
Criamos alma nova e partimos mais uma vez pro palco das brigas. Já havia se
passado quase duas horas do primeiro fogo. Agora éramos doze nazarenos.
Ninguém
percebia nossa presença se arrastando rente ao chão, tomando as posições no
mesmo curral para liquidarmos com os cangaceiros que continuavam ocupando a
mesma casa como se nada tivesse acontecido.
De cara vi
logo Lampião.
Estava
meditativo, encostado na janela, alheio ao tempo, com a cabeça nas nuvens.
Fiquei olhando
pra ele e vi, não apenas o cangaceiro meu inimigo, mas o cabra macho que ele
era, altivo, jamais dobrou o lombo pra quem quer que seja.
Tinha palavra.
O que falava
era lei.
Cumpria o
prometido.
Acima de tudo,
era valente.
Ele continuava
vagando nos pensamentos. Aí me organizei pra atirar. Pus a cabeça dele bem
dentro da alça da mira do meu rifle.
Era o fim de
Lampião.
Quando espremi
o dedo no gatilho, vi que estava travada.
Mentalmente
soltei um palavrão.
Fui destravar
a arma silenciosamente, mas teve o " clic "inevitável.
Nesse exato
momento Lampião deu uma cambalhota pra trás, correu zinguezagueando, e nós
atirando no homem que mais parecia um gato acuado fazendo todo tipo de pirueta,
quando chegou no pé da porta da casa, pulou pra dentro numa velocidade
impressionante.
A estas
alturas os cangaceiros respondia o tiroteio.
Por um
instante pensei ter eliminado com Lampião. Perdi a ilusão quando escutei sua
voz:
" - Tá
vendo David, todos os homens de Nazaré não vale um só de minha marca".
Aí respondi:
" - Mas
ainda hoje mando você roubar bode no inferno".
Era tanto
palavrão com a gente e com nossas mulheres, que muitas vezes não vale a pena
repetir.
Mas o tiro
corria frouxo. Era uma barafunda infernal.
Os cangaceiros
tanto atiravam como gritavam arremedando os animais, cantando, parecia até que
não tinham medo e a coragem pra brigar ia às bordas da insanidade.
De repente
Pedro Tomáz me puxou pelo braço e mostrou-me meu irmão Olímpio, ferido, com um
tiro na espinha, mesmo no meio das costas. Foi um banho gelado em mim, fiquei
mudo, com medo do pior acontecer.
Sentei-me ao
seu lado, pus sua cabeça na minha perna. Nunca pensei na minha vida vê um irmão
meu naquele estado, deitado no chão, se esvaindo em sangue, dizendo coisa por
coisa. Cada vez mais pálido e gelando. Para desfechar com mais dor este
momento, uma bala lhe atingiu a cabeça, quase me ferindo também.
Fiquei louco.
Não enxerguei
mais nada.
Cego de dor e
ódio, gritei:
"-
Lampião, Olímpio morreu! "
Todo mundo
parou de atirar. Tanto os cangaceiros como nós.
Saltei de
peito aberto pro meio do terreiro, gritando pra o sertão inteiro escutar:
" - Lote
de cangaceiros filhos da puta! Lampião, seus tiros acabou com a vida do meu
irmão. Vamos agora, nós dois, decidir nossas vidas na ponta do punhal. Venha
Lampião, vamos disputar num duelo".
Lampião
calmanmente respondeu:
" - Sinto
muito pela vida de Olímpio. Conheci bem de muito tempo. Era um menino, noivo,
trabalhador. Eu, David, comecei a lutar mais novo do que ele, mas nunca disse
que era novinho e bonzinho. Quando mataram meu pai eu tinha a idade do
Olímpio... Quem sai pra chuva vai se molhar. Quem parte pra briga, corre o
risco de morrer".
Voltei a
insistir:
" - Vamos
decidir na faca, só nós dois".
Mais uma vez
recuou:
" -
David, não brigo com quem está querendo morrer.
Você está
desesperado.
Se está
querendo morrer, empurre a faca na sua barriga.
Agora mesmo
estou com dois refles apontados pra você. Se mandar os meninos atirar, eles
atiram. Volte para seu lugar e recomecaremos a briga".
Sair andando
para minha posição, cada passo que dava era um tiro que disparava em direção a
porta que Lampião estava. Ao chegar no local que me entrincheirava, recomeçou o
tiroteio.
Pouco mais de
vinte minutos depois, tomba morto outro dos nossos, foi Inocêncio. Jovem como
Olímpio.
A partir daqui
estávamos com gosto de derrota na boca.
Os tiros não
tinham piedade.
A tarde estava
cedendo lugar pra noite, quando saímos da Baixas levando os dois corpos dos
companheiros, mais do que isso, um irmão e um primo.
Foi luto em
Nazaré e na minha alma, até hoje. Isso foi no ano de 1924, o mês não me recordo
direito, tenho anotado, no óbito e nos documentos, mas não me lembro assim de
cor, só sei que era tempo de safra de umbu.
Do livro:
Lampião, nem herói nem bandido, a história
De: Anildomá
Willans de Souza
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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