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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Sila- Depoimento de quem sobreviveu


O momento bom era fim de mês, quando os macacos iam receber o ordenado na sede da polícia, na Bahia. Por 15 dias o sertão ficava livre. A gente ia para a fazenda de algum coiteiro, matava criação, fazia festa. O cangaceiro Balão tocava realejo [espécie de acordeom], a gente dançava. Éramos como uma família.


Quando Zé Sereno informou que iríamos para a gruta de Angicos, em Sergipe, onde o massacre aconteceria, achamos que seria mais uma reunião de costume. A viagem foi tranqüila, mas, ao chegar, notei Lampião abatido. Talvez estivesse adivinhando as coisas. Maria me disse que há uns meses ele andava assim.


De noite, depois de comer, Maria disse a Lampião que ia sair comigo para fumar. Ela não fumava na frente dele em sinal de respeito. Ela gostava de conversar comigo. E me confidenciou que estava cansada daquela vida: 'Nem minha filha posso ver, é só fugir, correr'. Contou que tinha até proposto a Lampião irem morar no Mato Grosso, e ele não quis. Durante a conversa, percebi uma luz, ao longe, que acendia e apagava, como uma lanterna. Comentei com Maria e ela disse que devia ser um vaga-lume. Já eram os macacos posicionados para nos atacar.

Zé Sereno, o primeiro da esquerda

Voltamos para a barraca, Zé já estava deitado, preferi não incomodá-lo. Se eu tivesse acordado ele, ele chamaria Lampião, teríamos fugido ou nos equipado. Mas a volante chegou de surpresa. Acho que estava escrito.
No dia 28 de julho de 1938, Zé Sereno se levantou antes de amanhecer e foi rezar com Lampião. Falei que ia dormir mais um pouco e já me levantei com um tiro. Saí descalça, correndo, a fumaça das balas não me deixava enxergar nada. Era tiro de metralhadora, rifle, revólver. Segurei nas mãos de Enedina e corremos.

Do acervo de Alcindo Alves da Costa

Vi o desespero dos outros, pela última vez avistei meu irmão, Mergulhão, que tinha entrado no cangaço até por minha causa.
Subimos um morro com sangue escorrendo pelas pernas machucadas pelos espinhos dos xiquexiques. Enedina foi atingida e os miolos dela cobriram meu rosto. Eu e Criança nos arrastamos por uns 300 metros e escapamos. Ouvíamos os gritos dos soldados: 'Lampião está morto! De repente, Zé apareceu entre as moitas. Depois soubemos que ao todo foram 11 mortos.   
Foi a coisa mais triste do mundo. Arrasados, fugimos com os outros sobreviventes e passamos uma temporada no mato. De vez em quando aparecia um coiteiro que nos contava que as cidades estavam em festa. Soubemos que as cabeças de nossos amigos foram exibidas em várias cidades. Eu nunca quis saber detalhes sobre isso, nunca quis ver as fotografias. As lembranças desse dia são horríveis. Com o tempo, a memória vai ficando mais sensível. Tenho pesadelos freqüentes com tiroteios, em que corro, corro... Só acordo quando caio da cama.


O bando foi reorganizado às pressas por Zé Sereno, mas, sem Lampião, o movimento estava morto. Nos escondemos em uma fazenda amiga, e o capitão Aníbal, comandante da polícia, a mando do presidente Getúlio Vargas, começou a mandar cartas para o Zé, falando que a gente se entregasse, que nada iria acontecer. Um dia Zé reuniu todos os cangaceiros e falou: 'Se não der certo, a gente se revolta'.
 Seguimos para Jeremoabo, cidade baiana, onde devíamos nos entregar, e, no caminho, passamos um dia em Serra Negra. Quando entramos na cidade, não ficou ninguém dentro de casa. Saíram todos para nos ver. Lá, à tarde, eu e Zé casamos na igreja. Usei um vestido estampado. Estava feliz, achando que a vida ia melhorar.


Ao nos entregarmos, não fomos presos, mas não podíamos sair da cidade. Os casados tinham até direito a uma casa. Eu estava grávida e tive um aborto aos cinco meses. Adoeci, sentia dores pelo corpo, acho que de canseira.
Após dois meses, fomos tentar a vida em Salvador. Antes, pedi que Zé desse ao capitão Aníbal os pertences do cangaço – chapéus, bornais, cantis cravejados a ouro. Queria esquecer tudo. Zé tomou conta de uma fazenda de cana até sair a anistia. Lá, tive Gilaene, minha primeira filha. Mas Zé pegou uma briga com jagunços e fugimos. Andamos a pé semanas. Meu braço ficou inchado de carregar a menina.
Fomos para Minas, onde tive Ivo, meu segundo filho. Zé trabalhava em uma fazenda e eu costurava. Tive outro parto, de gêmeos, que morreram com 14 dias. Depois de outras pequenas andanças, paramos em São Paulo, onde tive Wilson, o caçula, e aprendi a evitar filhos, com tabelinha.
 Fomos morar no bairro de Vila Jaguara, onde criamos as crianças. Zé trabalhou como segurança particular, depois em uma escola da prefeitura, onde se aposentou. Mas eu é quem sempre tomei as rédeas da casa. Costurei por dia em casa de freguesa, tive sala de costura nos Jardins, costurei no Mappin, na TV Bandeirantes, fiz bicos de vendedora e enfermeira.


Por nove anos Zé viveu doente, a vida ficou ainda mais dura. Ele morreu de derrame cerebral em 1982. Durante quase 50 anos juntos, ele foi bom pai, mas toda a vida foi mulherengo.
Por muitos anos, nunca comentei nossa história com ninguém. Só me dei conta da importância do que tinha vivido quando meus filhos já eram moços. Hoje vivo de aposentadoria e ganho algum dinheiro extra dando palestras em faculdades e eventos sobre o cangaço. Daquela época, guardo apenas o chapéu do Zé e um bornal.
Eu sou feliz, graças a Deus. Pude criar meus filhos com três coisas importantes – paz, saúde e uma mãe que olhasse por eles. Acho que o cangaço era meu destino e que sobrevivi para contar a história. Me dou valor por ser o que sou e ter passado o que passei. Mulher tem que ser corajosa. Até hoje ando sozinha por esse Nordeste todo, todo mundo sabe que fui cangaceira de Lampião e me respeita."

Livros lançados por Ilda Ribeiro de Souza: "Sila – Memória de Guerra e Paz", editora da Universidade Federal de Pernambuco, 1995; e "Angicos, Eu Sobrevivi", Oficina Cultural Monica Bonfiglio, 1997.

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