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domingo, 8 de novembro de 2015

AS LAVADEIRAS DO RIACHO ANTIGO

Por Rangel Alves da Costa*

Os tempos são outros, e como foram modificando tudo. E na esteira dos tempos novos a negação das tradições, dos costumes, dos afazeres próprios de um povo. Logicamente que os avanços tecnológicos e os modismos relegaram ao esquecimento até mesmo os hábitos mais sublimes e os ofícios mais singelos. Como disse o velho na sua calçada, antigamente se passava e retornava, e hoje apenas se vai sem olhar pra trás.

Somente nas distâncias interioranas, naqueles lugares onde as porteiras do progresso ainda não foram completamente escancaradas, ainda é possível encontrar alguns costumes que fincaram nos povos como raízes. Mas apenas alguns, pois tantos outros já foram, em nome das facilidades da vida, devidamente expurgadas do dia a dia das pessoas, até mesmo as mais humildes.

Muito há que se recordar. O remédio recolhido ali mesmo no quintal, o fogão de lenha com a panela de barro por cima, a vasilha de leite à porta esperando o leiteiro chegar ao alvorecer, o cuscuz sendo ralado para depois perfumar os quintais sertanejos, o café sendo batido em pilão e depois fazendo a festa do sabor na chaleira bonita, o lavatório de mãos, a goiabada com queijo após a refeição, a moringa à janela, as vizinhas debulhando feijão de corda pelas calçadas, as senhoras rendeiras com suas almofadas de bilros, os velhos senhores pinicando fumo de rolo para o cigarro de palha de milho, o arroz doce sendo oferecido pelas ruas, o tacho de cocada defronte às casas, a vendedora de araçá, o retratista com seu tripé mágico, a chegada do circo sendo anunciada em festa, o bilhete de amor deixado à janela, a menina bonita toda faceira com seu vestidinho de chita. Mas os tempos são outros.

Não há mais pomar no quintal, não há mais fruta madura ao amanhecer. Não há mais feijão sendo batido pelos arredores nem aquela imensidão de grãos espalhados pelas calçadas. Não há mais caçada que resulte em preá, codorna, nambu ou qualquer outro animal de caça. Não há mais passarinho pulando de galho em galho nem gorjeios pelos quintais. Não há mais ferreiro fazendo chocalhos nem velha senhora preparando um xarope bom. Desde muito que não se faz sabão de cinzas nem manteiga de garrafa da boa. Até o leite de hoje não tem serventia à coalhada. Poucos são os carros de bois que ainda rangem pelos estradões, raros são os transportes no lombo de burros. Quando a noite cai, ao invés de acender o candeeiro ou a lamparina, basta apertar o botão da energia elétrica. O radinho de pilha deu lugar à televisão, o fogo de chão ao fogão a gás, o pote e a moringa à geladeira. Até mesmo lavanderia já não é comum pelos quintais.


Mas ainda recordo do muito que havia e hoje foi relegado ao esquecimento. É como se ainda avistasse aquelas sertanejas passando com latas ou baldes na cabeça em direção aos tanques e barragens pelos arredores. Seguiam em grupos, num converseiro danado, e voltavam já molhadas de suor e da água que escorria, em passos lentos e cuidadosos. E também outras mulheres passando com imensas trouxas de panos em direção ao riachinho. Num tempo sem água encanada, sem energia elétrica e máquina de lavar, não havia outro jeito senão lavar as roupas nas águas das chuvas ou nos poços grandes formados no riachinho. Um local ideal tanto para lavar como bater e estender as roupas molhadas.

Aquelas lavadeiras dificilmente levavam para o riacho os panos sujos de casa, pois procuravam sobreviver lavando roupas de outras famílias. Os panos de casa tinham de aguardar os afazeres em troca do dinheiro do pão, da farinha, do açúcar. Por isso mesmo que logo cedinho seguiam com trouxas imensas em cima das cabeças. Além das roupas, sempre carregavam o sabão em pedra. E caminhando iam até chegar às pedreiras em cujos lados as poças grandes se formavam após as enchentes. Então começavam a lide. Molhar os panos, passar sabão, esfregar, bater, enxaguar e depois estender nas pedras ao redor. E cantavam enquanto exerciam seus ofícios de lavadeiras:

O meu amor partiu
diga comadre se alguém viu
o meu amor quando partiu

o meu amor me deixou
numa tristeza sem fim
para mim tudo acabou
só há tormento em mim

onde está meu bem querer
cadê comadre cadê
já não posso mais sofrer

Debaixo do sol sertanejo, com rostos avermelhados dos esforços para esfregar e com suores caindo como gotas d’água, ainda assim não se cansavam de cantar:

Sou a fulô mais bonita
de rosto rosado e vestido de chita
sou a fulô do sertão
e você jardineiro do meu coração

O trabalho todo era ensaboar e esfregar aquele monte de roupa. Não só passar sabão como bater cuidadosamente na pedra para que a sujeira espanasse. Tudo isso era um dureza danada, até mesmo para quem quase todo santo dia estava naquele ofício. Mas depois era só estender as roupas em cima das pedras, ter o cuidado para o vento não levar, que não demorava muito e tudo já estava pronto para ser dobrado. Depois retornavam deixando para trás o eco de suas canções: Sou a fulô mais bonita, de rosto rosado e vestido de chita...

Poeta e cronista

blograngel-sertao.blogspot.com

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