Por Lira Neto
A veneração
popular padre foi rejeitada por mais de um século pela Igreja - mas não mais
Cícero: um
santo controverso - Reprodução
Um padre que
viveu sob o signo da controvérsia e morreu proscrito, condenado pelo Santo
Ofício. Esse foi sacerdote brasileiro Cícero Romão Batista, acusado no fim
do século
19 de proclamar falsos milagres, de incentivar o fanatismo popular e
de se beneficiar financeiramente da devoção extremada de seus milhões de
seguidores.
Em decorrência
das acusações de que era um rebelde, um desobediente à hierarquia católica e um
semeador de fanatismos, ele foi alvo de um inquérito eclesiástico que terminou
por proibi-lo de rezar missas, de confessar fiéis e de ministrar sacramentos
como o batismo e o matrimônio.
Tornou-se,
então, um pária da fé. Apesar de idolatrado pelos cerca de 2,5 milhões de
peregrinos que acorrem todos os anos à cidade cearense de Juazeiro do Norte
para reverenciar sua memória, Cícero foi um padre maldito, renegado pela Igreja
Católica.
Fazedor de
milagres
Toda a
história pessoal de Cícero Romão Batista está permeada de mistérios,
ambiguidades e contradições. Amado e odiado em igual medida por seus
contemporâneos, depois de morto - e talvez ainda mais a partir daí - ele
continua a provocar sentimentos idênticos de adoração e repulsa.
Nascido na
cidade cearense do Crato em 1844, ordenado padre em 1870, Cícero viveu e
cresceu na confluência de dois mundos. De um lado, o universo mágico do
misticismo sertanejo, no qual a crença em lobisomens,
almas penadas e mulas-sem-cabeça convivia com a festiva devoção aos santos
padroeiros e com as advertências apocalípticas dos profetas populares, que
pregavam o fim dos tempos.
Padre Cícero
Romão Batista / Crédito: Reprodução
Do outro lado,
o mundo da fé ritualizada, da disciplina clerical e da submissão cristã com a
qual foi educado e doutrinado no seminário. Com um pé no maravilhoso, outro na
ascese, Cícero protagonizou uma biografia acidentada, recheada de episódios
mirabolantes que mais parecem beirar a ficção.
Entretanto,
até os 45 anos de idade, sua vida nada teve de extraordinária. Em 1889, Cícero
era um simples padre de aldeia, rezando missa numa minúscula capelinha do então
povoado do Juazeiro, a 600 quilômetros de Fortaleza, quando um fenômeno
misterioso chamou a atenção dos sertanejos, da Igreja e da imprensa.
Ao ministrar a
comunhão a uma beata - a humilde costureira e doceira Maria de Araújo -, a
hóstia consagrada teria se transformado em sangue. "Não posso duvidar, porque
vi muitas vezes", escreveu Cícero a dom Joaquim José Vieira, bispo
do Ceará.
Os jornais
abriram manchetes para noticiar o fenômeno e os sertanejos caíram de joelhos
diante do proclamado milagre. A Igreja, porém, acusou Cícero e a beata de
fraude. "Se Maria de Araújo recebe realmente provas do céu, que as vá
gozando só, sem perturbar a boa ordem da diocese", desdenhou o bispo
Vieira.
Fato ou
embuste, o caso é que o padre e seus adeptos evocaram em sua defesa uma série
de fenômenos mais ou menos semelhantes, devidamente chancelados pelo Vaticano
sob a classificação genérica de "milagres eucarísticos". Mas uma
frase atribuída ao então reitor do Seminário da Prainha, o padre Pierre-Auguste
Chevalier, revelaria a dificuldade do clero tradicional em aceitar as
manifestações da fé popular: "Jesus Cristo não iria sair da Europa para
fazer milagres no sertão do Brasil", teria tripudiado o francês.
Chefe político
O episódio da
hóstia que diziam se transformar em sangue rendeu a Cícero a admiração dos
milhares de peregrinos, que desde então não nunca pararam de chegar a Juazeiro
para testemunhar a suposta maravilha. Mas também significou para o padre uma
longa via-crúcis de indisposições perante as autoridades eclesiásticas da
época.
Banido pelo
clero, Cícero passou a ocupar a posição de mártir no imaginário coletivo, ao
mesmo tempo que começou a desfrutar de uma enorme notoriedade e de um imenso
poder junto ao povo mais simples do sertão, vítimas históricas da seca e do
descaso governamental. Aquela gente, sem perspectivas, sem dinheiro e sem chão,
cada vez mais se identificava com o sacerdote que nunca foi propriamente um
grande orador, mas em compensação sabia falar a mesma língua deles, chamando-os
de amiguinhos, ouvindo-lhes as queixas, distribuindo prédicas e conselhos.
Moralista
severo, Cícero pregava contra os amancebados, os festejos pagãos e o
desregramento das famílias. Numa terra em que imperava a lei do punhal e do
bacamarte, seu lema mais famoso conclamaria os pecadores ao arrependimento:
"Quem bebeu não beba mais, quem roubou não roube mais, quem matou não mate
mais", costumava dizer.
Estátua no
Juazeiro do Norte em homenagem ao Padre / Crédito: Wikimedia Commons
Quando não
pôde mais celebrar batismos, ele próprio aceitou apadrinhar inúmeras crianças,
vindo daí o título de Padrinho Padre Cícero, que na corruptela da linguagem
popular resultou Padim Pade Ciço.
"Em cada
casa um oratório, em cada quintal uma oficina", pregava ele, atraindo
trabalhadores, agricultores e artesãos de todo o Nordeste, que passaram a se
fixar e aos poucos transformaram o arrabalde em um importante centro
manufatureiro. O povoado virou cidade autônoma e, em 1911, Cícero foi nomeado o
primeiro prefeito de Juazeiro.
Líder
religioso, tornou-se também chefe político, igualmente polêmico e
contraditório. Ao mesmo tempo que pregava aos náufragos da vida, como se
referia aos menos favorecidos, estabeleceu alianças com as elites poderosas.
A Santa Sé
delibera
Entre 2001 e
2006, uma comissão multidisciplinar de estudos se debruçou sobre a vasta
documentação relativa ao padre, em arquivos do Brasil e do Vaticano. Coordenada
pelo bispo do Crato, dom Fernando Panico, tal comissão foi composta por
especialistas de várias áreas do conhecimento: antropologia, filosofia,
história, psicologia, sociologia e teologia.
A finalidade
era trazer à luz novos documentos que servissem para tentar responder a uma
questão que sempre acompanhou o nome de Cícero: quem afinal foi esse homem,
acusado de espertalhão por muitos, aclamado como visionário por outros tantos?
O relatório
final da comissão foi entregue em maio de 2006 na Santa Sé. Junto, uma coleção
de 11 volumes reunia as transcrições das centenas de cartas trocadas entre os
principais personagens da história do padre. Um volume à parte levava cerca de
150 mil assinaturas de populares em prol da reabilitação, às quais se somava um
abaixo-assinado no qual se lia o nome de 253 bispos brasileiros favoráveis à
causa.
Em complemento
à papelada, a carta de dom Fernando ao papa: "Venho com toda esperança e
humildade suplicar a Vossa Santidade que se digne reabilitar canonicamente o
padre Cícero Romão Batista, libertando-o de qualquer sombra e resquício das
acusações por ele sofridas".
Em setembro de
2008, a igreja de Nossa Senhora das Dores - o templo que Cícero construiu em
Juazeiro e no qual depois se viu impedido de rezar missa - foi elevado pelo
Vaticano à categoria de basílica. Com isso, o brasão de Bento XVI foi
sintomaticamente colocado à porta de entrada, bem à vista dos romeiros que
chegam para louvar o Padim.
No templo em
que o padre está enterrado, a capela de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro,
também em Juazeiro, foi autorizada a instalação de um vitral multicolorido em
que se destaca a imagem de Cícero, ao lado de outros santos oficiais.
Papa Francisco
e o Governador do Ceará, Camilo Santana, na cerimônia de beatificação de
Cícero / Crédito: Reprodução
Em 2015,
finalmente, o perdão se tornou 100% oficial. O bispo Dom Fernando Pânico,
declarou sua reabilitação em 13 de dezembro. Esse é o primeiro passo para uma
posterior beatificação, ou seja, o reconhecimento canônico de que o homem
Cícero Romão Batista teria vivido na plenitude das virtudes cristãs, sendo um
bem-aventurado, resultou na consequente autorização para o culto público a seu
nome.
Devido às
milhares de graças que os romeiros dizem ter alcançado por intercessão do padre
Cícero – cegos que teriam voltado a ver, aleijados que andaram novamente,
loucos que teriam recuperado o juízo –, o caso, ainda pode evoluir da simples
beatificação para a efetiva canonização, quando então ele seria elevado à honra
dos altares de toda a Igreja. Esse processo burocrático, como ocorreu com Frei
Galvão (1739-1822), o primeiro santo nascido no Brasil e durou vários
anos.
Saiba mais
Padre Cícero:
Poder, Fé e Guerra no sertão, Lira Neto, Companhia das Letras, 2009
Milagre em
Joaseiro, Ralph Della Cava, 1976
LIRA NETO
nasceu em Fortaleza, em 1963. Jornalista, escritor, mestre em comunicação e
semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e
doutorando em história pela Universidade do Porto, Portugal, ganhou o prêmio
Jabuti em quatro ocasiões na categoria melhor biografia. Pela Companhia das
Letras, publicou Padre Cícero (2009), vencedor do Jabuti em 2010, a trilogia
Getúlio (2012-14), cujo segundo volume foi premiado em 2014, Uma história do
samba (2017) e Maysa (2017).
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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