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sábado, 16 de agosto de 2014

DONA FEIA

Por Rangel Alves da Costa*

Dona Feia se enclausurou no seu mundo de modo tão resoluto que quase ninguém sabia mais de sua existência. Talvez por não saber onde estava a mulher, se ainda viva ou se já descambada dessa vida, todos que passavam diante da janela olhavam naquela direção. O desejo maior era ver algum sinal de Dona Feia, ainda que pelas brechas da madeira.

Acaso se aproximasse mais e olhasse atentamente em direção às frestas, certamente encontraria sombras do olhar de Dona Feia se esgueirando do outro lado, vigiando o mundo, a rua e os seus caminhantes pelas juntas corroídas da madeira. Mas não avistaria a feição entristecida, o olhar carregado de dor, a solidão em pessoa.

Coitada de Dona Feia. Vivendo enclausurada, na solidão da vida, distante de tudo, sem nunca mais ter colocado os pés além da portada, simplesmente porque se imaginava a mulher mais feia do mundo. E não adiantava qualquer conhecido querer demovê-la desse pensamento, eis que se achava com razões sentimentais suficientes para se achar assim.

Ao menos o espelho dela não falava, como ocorre com o de muita gente, pois emudecera de vez pela velhice do tempo. Mas toda vez que ela chegava chorosa, quase não encontrando coragem para se olhar, ele tinha vontade de dizer que não suportava mais vê-la assim tão entristecida por uma situação que não existia. Ora, mas você não feia! Diria.

Mas a sua mudez impedia de dizer qualquer coisa e ter de suportar calado aquele injusto, profundo e doloroso sofrimento. Mas culpa dela, sabia. Culpa da própria Dona Feia. Quando jovem não saía diante do espelho, toda alegre e sorridente, cheia de festeiro no espírito e na alma, alardeando a própria beleza sem igual. E bonita mesmo a danada.

E se penteava de minuto a minuto, cantava, recitava versos, se enchia de ruge e batom, colocava um brinco e no outro instante já vinha com outro, se achando uma verdadeira princesa. Lavandas, loções, uma verdadeira primavera respingada pelo corpo inteiro. Somente o espelho sabia dos motivos daquela festa toda, daquele enfeitamento todo. Estava apaixonada. E estava mesmo.


Estava apaixonada, mas não correspondida. Também o rapazinho sequer imaginava do amor nutrido por aquela mocinha. Olhava-a de um jeito diferente, pois imaginava também ser olhado de forma diferente, com um brilho de primeiro sol naquela feição tão doce e angelical. Mas nunca se aproximou por medo de ser ignorado por ela. Não sabia, contudo, que o seu distanciamento se tornaria num verdadeiro martírio para a vida da mocinha. E foi por isso que começou a surgir a feiura na moça bonita. E também o nome Dona Feia.

Sentindo-se rejeitada, recusada pelo rapaz, começou a colocar a culpa em si mesma. Daí em diante já não procurava tanto o espelho e as vezes que dele se aproximava era com feição entristecida, chorosa, sentindo-se a mulher mais desprezível e inexpressiva do mundo. E assim porque colocou na cabeça que a recusa era motivada pela sua falta de beleza, pela sua feiura. Então se olhava como feia, se via como feia, passou a se sentir a pessoa mais feia do mundo.

E uma pessoa tão feia não pode sair por aí servindo de zombaria para os outros, logo imaginou antes de tomar a decisão que mudaria para sempre o seu destino. Eis que decidiu abdicar do mundo exterior, resolveu não mais sair pelas ruas e se fechar de vez nas quatro paredes de sua casa, principalmente na solidão sombria de seu quarto. Resoluta, passou a fazer de seu quarto todo o universo que dispunha. Poucas vezes andava pelos outros aposentos da casa, mas jamais abrir a porta e sair para abraçar o sol. Talvez o sol também não brilhasse diante de sua feiura, pensava.

Olhava a vida por trás da janela, escondida, apenas lançando o olhar para o mundo lá fora. Via pessoas passando e olhando naquela direção. Via quando seu moço bonito passava e depois disso chorava o resto do dia, transbordando na noite. Já não se olhava no espelho, já não se penteava, praticamente havia rejeitado viver. Um dia ouviu alguém batendo à janela. As batidas se repetiram diversas vezes. Mas não abriu no momento.

No instante seguinte, caminhou devagarzinho e foi até a fresta. Avistou alguém caminhando, já indo embora. Era ele. Não tinha dúvidas. Ao olhar mais abaixo, rente ao umbral, percebeu uma flor. Mas tarde demais para pensar em poesia, em amor, na vida. A morte lhe cairia como uma beleza infinita. E Dona Feia partiu com sua beleza e sua dor.

Poeta e cronista
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