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domingo, 1 de março de 2015

IRMÃ DULCE E VOLTA SECA


Num dia qualquer na cadeia, Volta Seca estava em sua cela e recebe o comunicado que uma freira vinha vê-lo. Ele não era dos mais religiosos, aliás, antes mesmo de se tornar cangaceiro de Lampião, Antônio não era de ir à igreja, mas ele lembra que assistiu uma missa em Poço Redondo, era dia 19 de abril de 1929. O Padre Artur Passos estava como sempre celebrando a missa da sexta-feira e do nada as pessoas se alvoroçaram e Lampião acompanhado de mais dez cabras invadem a capela. O padre engoliu seco e continuou a missa, pedindo para que as pessoas continuassem no seus  lugares. Os cangaceiros se sentaram, inclusive Volta Seca. Quando a missa acabou, o padre foi conversar com o chefe Virgulino e este deu um bilhete com o nome de todos, menos o de Fortaleza, não se sabe porquê.

Volta Seca que era bem enturmado na cadeia ficou curioso e perguntou o nome da religiosa e porque ela queria ver ele. Disseram a ele que era uma boa mulher que ajudava os pobres e que em maio do ano que eles estavam, 1939 ela para abrigar doentes que recolhia nas ruas, invadiu cinco casas na Ilha do Rato, em Salvador. Volta Seca gostou dela por ser ousada e aceitou a visita. Era o mesmo ano de 39, setembro, ele já havia comido sete anos de cadeia, parecia estar acostumado com a vida lá dentro.

Chegou o dia marcado e a freira fui por volta das 9h. Era jovem ainda, 24 anos, bonita, branca e baixinha. As pessoas do Presídio do Engenho da Conceição já a conhecia de nome. Volta Seca percebeu de longe que ela trazia consigo uma sanfona e um sorriso nos lábios. Ela foi até o pátio principal, sentou e começou a tocar para os presos que estavam ali. Volta Seca estava a uma grande distância mas ele sabia que era ela. O som começou a ecoar os becos recheados de galanteadores, malfeitores e ladrões. A música atraía todos para perto dela. Alguns soldados ficavam perto, mas eles não ofereciam perigo, não mais. Volta Seca também foi atraído pela música, assim como os ratos do conto “O Flautista de Hamelin” dos irmãos Grimm. Ele foi indo na direção da freira, devagar como sempre e percebeu que outros ex-cangaceiros também estavam sentados lá ouvindo música.




- Venha pra cá, eu não mordo, venha me ouvir tocar. Antônio dos Santos seu nome não é? 

Os outros presos olharam admirados para o acontecimento e a partir deste dia Volta Seca passou a ser mais respeitado que nunca. Mas, a princípio ele ficou calado. Não se sabia se vergonha de falar com ela por ter outras pessoas ou se era seu jeito de receber o novo. Mas, a música continuou. Depois de umas três ou quatro canções, Volta Seca fala pela primeira vez. 

- Eu já toquei realejo. Sei umas modinhas.

- Onde você aprendeu? 

- Nos tempos de cangaço, mas num gosto de falar disso não, vá continui tocano prá nóis.

Irmã Dulce não interrogava ninguém, mas passava mensagens de paz aos que estavam sentados no chão e em tamboretes improvisados com alguns baldes que estivera sendo usados para lavar o ambiente para a chegada da “Santa”. Ela estava lá, sem nenhuma vaidade, uma aura clara de paz. Volta Seca havia deixado pra trás o cangaço, mas naquele instante ele foi rebatizado através da música. 

- Se aproxime mais, meu filho, deixa eu ver você de perto. Você é ainda uma criança, que Deus te abençoe e te faça um homem bom quando sair deste lugar. Mas, antes mesmo de sair, continue sendo bom. 

- Dona Dulce, eu conheci outra Dulce que foi companheira de outro cangaceiro apelidado de Criança.

- Mas, meu filhinho, esta vida ficou para trás hoje você é Antônio dos Santos, dois nomes abençoados: “Antônio” do meu padroeiro “Santo Antônio” e “Santos” de todos os outros santos que restam.

Os presos caíram na risada, até os carcereiros. Não parecia que naquele meio eram pessoas que haviam cometido as maiores atrocidades, o respeito era incrível.

- Dona beata, eu não me acostumo com este lugar, mas eu prometo a senhora que mais nunca vô pegá numa arma em minha vida. Quero aprendê um ofíço aqui dento e saí cum dinheiro. Todo dinheiro que eu consiguí aqui vô dá prus pobre como eu, é só eu termina de cumpri minha pena.

- Que gesto bonito, Antônio, só por isso vou tocar uma música pra você que talvez a reconheça.

- Mais ôxi, como tú sabe?
- Deixa eu começar aqui...
“Olê mulher rendeira
Olê mulher rendá

Olé, Mulher Rendeira,
Olé mulhé rendá
Tu me ensina a fazer renda,
eu te ensino a namorá.

Olé, Mulher Rendeira,
Olé mulhé rendá,
Tu me ensina a fazer renda,
Eu te ensino a namorá.

Olé, Mulher Rendeira,
Olé mulhé rendá,
Saudade levo comigo,
Soluço vai no emborná.

Olé, Mulher Rendeira,
Olé mulhé rendá,
Se você tá me querendo,
Vamo pra Igreja, vamo casá.

Olé, Mulher Rendeira,
Olé mulhé rendá,
E depois de nóis casado,
Vou pra roça, vou prantá.

Olé, Mulher Rendeira,
Olé mulhé rendá,
Tu me ensina a fazer renda,
Eu te ensino a namorá.

Olé, Mulher Rendeira,
Olé mulhé rendá.”

- Essa eu cunhêço sim, mais cum ôtras prosas, mas bem qui tá bunitinha assim.

- Já estou de saída, Antônio, vim ver você e acabei fazendo uma apresentação aqui para os outros filhinhos, gostei muito de todos vocês. Quer alguma coisa, filho?

- Sim, quero qui toda vêiz que vinhé aqui mande me chama, vô na maió carrêra li vê.

- Combinado.

E a freira se levantou, recebeu palmas e foi se distanciando em direção à porta principal. Volta seca ainda foi até a grade e a viu entre as gigantescas palmeiras reais que ficavam do lado de fora do presídio. Esta seria a primeira vez de várias visitas. Os presos voltaram para suas celas e Volta Seca foi assoviando com um tímido sorriso a música que ouvira por último...

Santos, Robério B. Volta Seca. Página 225. 2017 (obra Inédita).

Fonte: facebook
Página: Robério Santos

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Um comentário:

  1. Anônimo15:31:00

    Na realidade caro Mendes, IRMÃ DULCE era mesmo a mãe dos pobres. Filha do Dr. Pontes, de família da elite baiana, mergulhou de corpo e alma nas obras filantrópicas. Muitas vezes, quando nos meus cansativos plantões dos fins de semana no Juizado de Menores de Salvador, conduzia crianças ao seu hospital e, por mais repletas que fossem as suas dependências, nunca uma só criança fora recusada. CONHECI A IRMÃ DULCE E SUAS OBRAS SOCIAIS DE PERTO.
    Abraços,
    Antonio Oliveira - Serrinha

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