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terça-feira, 26 de maio de 2015

OS CANGACEIROS DA MODA E OS CANGACEIROS REAIS

Por José Lins do Rego

Conta-se por toda parte a “mulher rendeira” da melodia sertaneja. A doce e triste música das caatingas chegou até aos ouvidos dos mestres cineastas de Cannes. E muito gostaram da toada maravilhosa. É que esta música envolve de poesia e que há de brutal na vida dos bandoleiros. O cangaceiro passa a ser aquilo que a imaginação do povo deseja que ele seja: uma força de rebelião, qualquer coisa de romântico como os cossacos de Don ou os terríveis mafiosos da Sicília. Entra a funcionar o poder imaginativo do homem para fundar-se uma galeria de heróis. Os poetas matutos, os cantadores anônimos descobrem no homem que não tem medo da morte, que mata sem dó nem piedade, uma força fora da natureza. Jesuíno Brilhante tinha poderes de encantar-se para fugir das tropas que o perseguiam. Contava-se que o cangaceiro cearense (o escritor equivocou-se aqui em afirmar que Jesuíno Brilhante era cearence, Jesuíno Brilhante era Potyguar) vinha por uma estrada e de repente via-se cercado pela polícia. Aí acontecia o milagre. A tropa passava por ele, que era no momento um pé de mato ou um jumento pastando. Para pegar Lampião – dizia um cantador – nem um frade de boa vida, nem uma mulher enxerida, nem as prosas dos doutores, nem vinte governadores, nem o bamba da nação; para pegar Lampião, só mesmo Nosso Senhor. A força desembestada, o ímpeto feroz para a luta absorvem as admirações ingênuas. Outro cantador chegou a dizer: “Para haver paz no sertão e as moças poder prosar e os rapazes poder casar e o povo poder se rir e os meninos se divertir, é preciso uma eleição para fazer Lampião governador do Brasil”. Dominando desta maneira pelo terror, pela arrogância contra os poderes constituídos, o cangaceiro conseguia vencer as resistências morais dos sertanejos. Já não há o governo como único senhor de tudo; há também um rei do cangaço que casa e descasa, capaz de impor-se aos agentes do fisco, aos padres, aos juízes. Então se cria o romanceiro, aparecem os ABC, espécie de cação de Rolando das Caatingas, vendidos nas feiras, a tostão. O povo dominado pelas coragens de fúria dos bandoleiros, refugia-se na arte para acreditar em alguma coisa que supere a crueldade das correrias e crimes. Todos nós, meninos nordestinos, sabíamos de cor as histórias que vinham nos folhetos de cordel. Todos tínhamos na memória a luta de Antônio Silvino com a onça, as brigas de Brilhante e Liberato. Mas o outro lado dos cangaceiros, a vida bestial de homens tremendos, é o que nos assombra. O cangaceiro não é só a legenda de lutas; é muito mais a sua vida seca como pedra, é o seu vírus de cobra pelo chão de pedra e espinhos. Neste sentido temos que toma-lo como natureza humana que excede a toda a normalidade. Para ele não há limites à resistência contra os elementos. Vence a fome e a sede como se fossem feitos de ferro. Assombra-nos como uma espécie à parte de gente. Retraem-se, encolhem-se como serpentes e quando saem de seus covis têm mais força. Dobram-se lhes os fuzis assassinos. E quando, saciados de sangue, de sexo, de tudo, param para descanso. Basta que um gemido de viola quebre o silêncio para que caiam por cima dos corações de pedra aqueles orvalhos da madrugada das cantorias. Às vezes de um rochedo brota o vermelho ou o azul de uma flor de trepadeira. De manhã, poderão sair para matar um pai honrado, ou desgraçar uma donzela.

“O Globo” – 04/09/53

Fonte: facebook

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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