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quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A CONVERSA DO CORONEL JOAQUIM REZENDE COM LAMPIÃO

 Por Ticianeli

Joaquim Rezende (à esquerda) conversa com Melchiades da Rocha. Foto: Maurício Moura - A Noite

A notícia da morte de Lampião, em 28 de julho de 1938, chegou ao conhecimento dos jornais da então capital do país, Rio de Janeiro, pelas mãos de um alagoano, Melchiades da Rocha, que era repórter do jornal carioca A Noite.

Foi ele quem recebeu o telegrama do seu irmão Durval da Rocha, despachado de Santana do Ipanema, em Alagoas, comunicando que “onze bandidos, inclusive Lampião, foram mortos pela polícia alagoana na fazenda Angico, em Sergipe”.

Naquele dia, às três horas da tarde, Melchiades havia deixado a redação quando a última edição do jornal já estava sendo impressa. Já na rua, lembrou que tinha uma carta para levar ao correio e voltou para apanhá-la.

“Nesse momento fui abordado por um solícito contínuo que me entregou um telegrama, dizendo-me: ‘é para o senhor e chegou agorinha mesmo'”, relatou o repórter.

A Noite de 28 de julho de 1938, edição das 19 horas, anuncia a morte de Lampião

Essa informação gerou um dos maiores furos de reportagem daquela época. Meia hora depois uma edição do jornal circulava com oseguinte título: “Morto Lampião“.

A título de curiosidade, a participação da família da Rocha no episódio não foi somente esta. Quando as cabeças dos cangaceiros chegaram à Santa Casa de Misericórdia de Maceió, foram autopsiadas pela equipe chefiada pelo Dr. Ezechias da Rocha, outro irmão de Melchiades.

Como prêmio pelo furo de reportagem, e também porque era alagoano, Melchiades recebeu a incumbência de viajar no dia seguinte para a sua terra natal e acompanhar os acontecimentos.

Na madrugada do dia seguinte, 29 de julho, o alagoano e seu colega Maurício Moura, repórter fotográfico, embarcaram no avião Tupã, do Sindicato Condor, no aeroporto do Caju, com destino a Maceió, onde chegaram às 15 horas.

Da capital alagoana, o repórter se dirigiu imediatamente para Santana do Ipanema, onde as cabeças iriam ser expostas.

No dia 30 de julho de 1938, Melchiades, já em Santana, descobriu que naquela cidade do sertão alagoano se encontrava também o prefeito recém-eleito de Pão de Açúcar, Joaquim Rezende, identificado por alguns como sendo um amigo de Lampião.

O Coronel Joaquim Rezende foi prefeito de Pão de Açúcar entre 1938 e 1941. Segundo Etevaldo Amorim no livro Terra do Sol, Espelho da Lua, a sua administração foi marcada por investimentos importantes para cidade, principalmente na melhoria das condições de moradia da população mais pobres.

Morreu assassinado em 1954, quando ocupava o cargo de delegado de Polícia. Os assassinos formam os irmãos Elísio e Luiz Maia. Elísio era então prefeito do município.

Melchiades da Rocha, em Bandoleiros das Catingas, lançado em 1942, recorda do encontro que teve com Joaquim Rezende em Santana do Ipanema.

Ele se refere ao prefeito de Pão de Açúcar como sendo “um abastado proprietário em seu município” e que ele estava em Santana também “à espera da cabeça de Lampião, pois desejava certificar-se se de fato ele havia morrido”.

A condição de amigo de Lampião ostentada por Joaquim Rezende aguçou os instintos do repórter, que começou a se perguntar o que teria levado um rico cidadão a “se tornar um afeiçoado do Rei do Cangaço”, quando era prefeito de uma cidade que poderia ser alvo das ações do bandido.

A narrativa a seguir é um valioso documento de como se davam as relações de Lampião com o poder político e econômico das regiões sertanejas vítimas do cangaço. Com a palavra Melchiades da Rocha:

Sem quaisquer etiquetas, pois nós sertanejos não somos, apenas, iguais perante a lei, apresentei-me ao Cel. Rezende e lhe disse à moda da terra:

— “Seu” Rezende, eu queria uma palavrinha do senhor!

— Pois não! — respondeu-me, amavelmente, o prefeito de Pão de Açúcar.

Momentos depois o Sr. Rezende e eu nos achávamos na sede da Prefeitura de Santana. Em poucas palavras relatei os meus propósitos ao cavalheiro que me fora apontado como sendo grande amigo de Lampião.

Após ter-me oferecido uma cadeira, o Sr. Rezende sentou-se e narrou, pormenorizadamente, como e por que se tornara amigo do Rei do Cangaço, amigo ocasional, bem entendido, pois não poderia ter sido de outro modo.

Fala o Coronel Rezende

Conheci Lampião em 1935, época em que me escreveu ele, pedindo mandasse-lhe a importância de quatro contos de réis, prometendo-me, ao mesmo tempo, tornar-se meu amigo se fosse atendido.


Frente do Salvo-conduto entregue por Lampião ao Coronel Joaquim Rezende

Em resposta à carta do terrível bandoleiro, mandei dizer-lhe pelo mesmo portador que lhe daria de muito bom grado o dinheiro, mas que só o faria pessoalmente.

Três dias depois Lampião mandou-me outro bilhete do seu próprio punho, dizendo-me que me esperava às 10 horas da noite na fazenda Floresta, município de Porto da Folha, em Sergipe, recomendando-me que fosse até ali, mas não deixasse de levar o dinheiro.

Não obstante os naturais receios que tive, à hora aprazada cheguei ao local do encontro, onde permaneci até uma hora da manhã, quando surgiu um cangaceiro que, ao ver-me, perguntou-me se eu era o moço que desejava falar ao capitão. Respondi que sim.

Dentro de poucos minutos, então, o Rei do Cangaço ali se apresentava acompanhado de quatro homens, “Juriti”, “Zabelê”, “Passarinho” e “Nevoeiro”.  Ao ver o grupo aproximar-se, identifiquei logo Virgulino e a ele me dirigi, cumprimentando-o.

O famoso bandoleiro, ao contrário do que eu esperava, recebeu-me amavelmente e foi logo perguntando sobre o que lhe havia levado. Sabendo que o Rei do Cangaço gostava de beber, eu, que levava comigo três litros de conhaque, lhos ofereci.

A fim de que desaparecesse logo qualquer suspeita do bandoleiro, prontifiquei-me a ser o primeiro a provar a bebida. Encarando-me com olhar firme, Lampião me disse em tom natural: “Concordo em que o senhor beba primeiro, mas não é por suspeita e sim porque o senhor é um moço decente e eu sou apenas um cangaceiro”.

Verso do Salvo-conduto, com os seguintes dizeres:“Au Amo Joaquim Rezendis, como prova di amizadi e garantia perante os Cangaceiro.

Offereci C. Lampião.”

Tomamos, então, o conhaque e, em seguida, abordei o Rei do Cangaço sobre o dinheiro que ele me havia pedido. Como resposta, disse-me ele: “O senhor dá o que quiser, pois eu dou mais por um amigo do que pelo dinheiro”.

— Esse fato — disse o conceituado comerciante de Pão de Açúcar — teve lugar no mês de agosto de 1935, e a minha palestra com Lampião durou três horas, tendo ele me falado de vários assuntos, entre os quais o relativo à perseguição de que era alvo, acrescentando que, de todas as forças que andavam em seu encalço, a que mais o procurava era a do então Major Lucena, dada a velha inimizade que o separava desse oficial da polícia alagoana, a quem reconhecia como homem de fato e dos mais corajosos.

Quanto às forças dos outros Estados, disse-me Lampião que se arranjava “a seu gosto…”, fazendo nessa ocasião graves acusações a vários oficiais dos que andavam em sua perseguição.

— Aí está como foi o meu primeiro encontro com o Rei do Cangaço. — Depois — acrescentou o prefeito de Pão de Açúcar — Lampião mandou pedir-me bebidas, charutos e também objetos de uso doméstico. Mais tarde, porém, fui informado de que ele estava empregando esforços no sentido de matar o Sr. José Alves Feitosa, ex-prefeito de minha terra que, como eu, o esperara muitas vezes ali, a fim de fazer-lhe frente, pois foi das mais terríveis a ação de Virgulino em nosso município.

Tratando-se de um amigo meu o homem que estava destinado a morrer às mãos de Lampião, procurei um pretexto para me avistar com este e não me foi difícil encontrá-lo. Todavia, após uma série de considerações, em que fui até exigente demais, Lampião, dizendo ao mesmo tempo que só fazia tal “sacrifício” para me satisfazer, prometeu-me sustar a realização de sua sanguinária intenção, declarando-me naquele momento que já tinha em campo dois homens para fazer o “serviço” lá mesmo na cidade de Pão de Açúcar, já que o visado andava resguardado, não saindo para parte alguma.

Tal conhecimento com Lampião, deixou-me, aliás, em situação crítica, pois inimigos meus denunciaram ao Coronel Lucena que eu era um dos coiteiros do celerado cangaceiro.

Ao ter ciência de tal acusação, dirigi-me ao referido oficial e lhe expus as razões que me levaram a ter contato com o Rei do Cangaço, após ter andado prevenido contra ele, longo tempo. Jamais faria isso se não fosse a situação em que, como muitos outros sertanejos, me encontrei durante longo tempo.

Intercedi, depois disso, em favor de várias firmas comerciais de Maceió e Penedo, cujos representantes teriam caído às garras do bando sinistro se não fora a minha intervenção junto a Lampião. Há dois meses passados, fui forçado, do que não guardei reserva ao Coronel Lucena, a intervir novamente em defesa de algumas vidas preciosas, no que fui feliz, conseguindo que Virgulino desistisse dos seus sinistros propósitos.

Outras informações 

Expedita Ferreira Nunes, filha de Lampião aos 21 anos de idade, com seu filho Dejair. Foto de setembro de 1953 Revista O Cruzeiro.

Após este depoimento, Joaquim Rezende continuou a conversar informalmente com o repórter e revelou que Lampião confessara a ele que tinha uma filha fruto da relação com Maria Bonita. A menina, então com 12 anos, estava sob a guarda de um vaqueiro no município de Porto da Folha, que a adotara.

Lampião também disse a ele que entrou para o cangaço aos 16 anos de idade, aderindo ao grupo do bandoleiro Antônio Porcino. Tinha a intenção de vingar a morte do pai e de um irmão que tombaram num choque com a Polícia alagoana.

Joaquim Rezende contou ainda que Lampião tinha vontade de abandonar o cangaço para se dedicar à pecuária, pois gostava da vida no campo. O cangaceiro disse ainda que havia adquirido duas fazendas no município de Porto da Folha pela quantia de nove contos de réis e comprado dois belos cavalos em Xorroxó, na Bahia, arreando-os luxuosamente.

Diante da possibilidade apresentada pelo prefeito de Pão de Açúcar de negociar a sua rendição às autoridades de Alagoas, poupando-lhe a vida, Lampião achou boa a ideia, mas argumentou que seria impossível isso acontecer por considerar que os governos da Bahia e de Pernambuco fariam tudo para eliminá-lo.

“Não tenho dúvidas de que Lampião, se tivesse podido, havia mudado de meio de vida, pois sei que nestes últimos tempos ele não atacava senão quando se via forçado a assim proceder”, concluiu Joaquim Rezende.

...

A filha de Lampião citada por Joaquim Rezende era Expedita Ferreira Nunes. Foi criada em Porto da Folha pelo casal Manoel Severo e Aurora, que também tomavam conta de duas fazendas — provavelmente as que Lampião citou como suas, mas que são citadas numa entrevista de Expedita como de Juca Tavares, padrinho dela.

Quando Lampião morreu, Expedita tinha cinco anos e nove meses. Isso indica que a informação de Joaquim Rezende sobre a idade da filha, 12 anos, estava errada. É possível que Lampião tenha falado 2 anos e não 12.

Expedita, depois dos 8 anos, foi viver com seu tio João Ferreira da Silva, o Joca Ferreira.

https://www.historiadealagoas.com.br/a-conversa-do-coronel-joaquim-rezende-com-lampiao.html?fbclid=IwAR1VFGn_ldIye0lkZHrKQ9DtpFQqXTu-ykwrGOxj4GiTdI5Bu84X6XAweCY

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