POR: MOACIR
ASSUNÇÃO
O fogo de uma
metralhadora Hot Kiss estrategicamente postada ceifou, em uma madrugada
enevoada, a vida de um dos maiores mitos do sertão brasileiro. Na gruta de
Angicos, município de Poço Redondo (SE), um labirinto de pedras ao lado do rio
São Francisco, morriam, em 28 de julho de 1938, Virgulino Ferreira da Silva, o
Lampião, sua companheira Maria Bonita e outros nove cangaceiros. Considerado
"enfeitiçado" e imoral pelos sertanejos, Lampião, que já havia
escapado de inúmeros combates e tocaias, morreu sem dar um tiro sequer. Sua
fama de imortalidade ficou, junto com o corpo retorcido, no chão do riacho seco
que cruza Angicos. As 11 cabeças foram levadas pelos algozes para exposição e
estudos no Instituto Nina Rodrigues, de Salvador.
Sessenta anos
depois de sua morte, que praticamente pôs termo ao cangaço, a figura de
Lampião, morto pelo comandante de volante (grupos móveis de policiais que
atacavam os cangaceiros na caatinga) João Bezerra, cresceu muito, até atingir a
dimensão de mito. Se estivesse vivo, o bandoleiro, nascido em 4 de junho de
1898, estaria comemorando o centenário neste ano
Personalidade
contraditória, Lampião não foi, embora tenha sido pintado dessa forma,
inclusive pelos prestigiados jornais "The New York Times" e
"Paris Soir", um bandido social. Apesar disso, pesquisadores como
Antonio Amaury Corrêa de Araújo, autor de seis livros sobre o cangaço, afirmam
que ele teve, algumas vezes, atitudes de Robin Hood, ao dividir o produto de
seus saques com a população carente. Ao mesmo tempo em que agia assim, o
cangaceiro celebrava acordos espúrios com os reacionários coronéis nordestinos.
Capitão do
exército e interventor federal em Alagoas, quando Lampião ainda estava vivo,
Eronildes de Carvalho, acusado de fornecer armas e munição modernas ao
bandoleiro, foi um dos seus mais notórios defensores. Na Paraíba, Lampião
contava com o providencial apoio do coronel José Pereira, personagem central da
Revolução de 30, com quem posteriormente se indispôs. Em Alagoas, o cangaceiro
também podia ficar tranqüilo. Era protegido por membros da família Malta,
antepassados da ex-primeira-dama
Rosane Collor de Mello, que davam excelente
cobertura a Lampião. Em troca de tanta "generosidade", os cangaceiros
eram usados na política local, protegendo coronéis e suas fazendas e, em alguns
casos, eliminando adversários incômodos.
Origens do
cangaço
Para o pesquisador
Frederico Pernambucano de Mello, um dos grandes especialistas brasileiros no
assunto, o fenômeno do cangaço é resultado da colonização violenta e do
isolamento cultural do sertão, região semi-árida que corresponde a 49% do
território nordestino. "Os homens que colonizaram o sertão, terra ignota
até metade do século passado, foram os rudes soldados que derrotaram o poderoso
exército holandês da época, negros vindos das minas do sul e bandeirantes
paulistas que mal falavam o português. Ao chegar, defrontaram-se com os índios
tapuias, que, ao contrário dos mansos tupis do litoral, eram bravos e
sanguinários. O choque desses dois grupos só poderia gerar uma raça habituada
ao cheiro de sangue", sustenta o pesquisador, que tem um punhal de prata,
com detalhes em ouro, que pertenceu a Lampião.
Fé e sangue
Em alguns
momentos, a violência da figura do cangaceiro e o poder de persuasão do líder
religioso, outro personagem importantíssimo do sertão, se aproximam. Exemplo
típico é a Guerra de Canudos, na qual multidões de sertanejos, entre eles
temíveis bandidos vindos das lavras de diamante de Lençóis (BA), reuniram-se em
torno do beato Antônio Conselheiro. Aproximações semelhantes ocorreram também
com Lampião. Em Juazeiro do Norte (CE), em 1926, o líder messiânico padre
Cícero, que já enfeixava considerável poder político, ofereceu, para espanto de
autoridades e militares, o título de capitão dos Batalhões Patrióticos ao
cangaceiro para que ele enfrentasse um inimigo muito mais temido pelos
coronéis: a Coluna Prestes, que circulava pela região. O bandoleiro teve apenas
algumas escaramuças com patrulhas do Cavaleiro da Esperança, Luís Carlos
Prestes.
Em 1927, após
ser derrotado em Mossoró (RN), Lampião cruzou o rio São Francisco e internou-se
na Bahia, justamente no Raso da Catarina, área onde atuara Antônio Conselheiro.
Grandes guerreiros de Canudos, Pajeú e João Abade, sob cujo comando sertanejos
derrotaram três expedições militares, usaram em seus combates táticas de
guerrilha semelhantes às que viriam a ser usadas pelos cangaceiros de Lampião
décadas depois.
Apesar de ser
um personagem arcaico, que usava patuás e rezas bravas característicos da
religiosidade medieval, Lampião, cuja inteligência e bravura eram reconhecidas
até pelos inimigos, utilizou vários ardis para se manter tanto tempo no
cangaço. As táticas iam desde o suborno de comandantes de volantes até a
conquista da simpatia e apoio da população com boas ações isoladas, como fazem,
nos dias de hoje, os traficantes dos morros cariocas. "Conversei com vários
ex-chefes de volantes que me confirmaram ter recebido dinheiro de Lampião para
fugir ao combate", revela o pesquisador Antonio Amaury. Espremida entre os
cangaceiros e a polícia, quase sempre tão brutal quanto os bandidos, a
população civil não sabia a quem recorrer.
Lampião se
sentia tão seguro do seu poder que, em 1925, chegou a mandar um telegrama ao
governador de Pernambuco propondo que esse dominasse o estado até Arcoverde
(então Rio Branco), enquanto ele governaria o sertão. Embora o fato tenha sido
apenas uma brincadeira do Rei do Cangaço, dá uma ideia da sua certeza de
impunidade ao atacar vilas do interior.
Polêmica
As
comemorações pelo centenário de Lampião e a proposta, aprovada por unanimidade
pela Câmara de Triunfo (PE), de construção de uma estátua em homenagem ao
cangaceiro dois metros mais alta que o Cristo Redentor serviram para reacender
antigos rancores. Um dos mais tenazes inimigos do bandoleiro, ainda vivo e
forte aos 95 anos, Davi Jurubeba passou oito anos perseguindo os cangaceiros na
caatinga e se irrita à simples menção da idéia. "Lampião foi um bandido
cruel e estuprador. Como podem querer homenagear alguém como ele?",
pergunta Jurubeba, que perdeu 17 parentes nas mãos dos cangaceiros. O
pernambucano, que garante jamais ter fugido dos bandidos, jura que, se fosse
mais jovem, impediria a construção do monumento. Com certeza, obteria sucesso.
Quem teria coragem de contrariar o homem que jamais fugiu de Lampião?
Filho de João
Bezerra, o comandante da volante que matou o Rei do Cangaço, o administrador de
empresas Paulo Brito, de 47 anos, acredita que há uma tentativa de transformar
Lampião em um herói. "Reconheço sua valentia, mas ele foi um bandido, que
jamais poderia servir de exemplo para ninguém", diz ele, que já hospedou
em sua casa, em Recife, Vera Ferreira, neta do bandoleiro. Brito lembra que seu
pai, apelidado de Cão Coxo pelos cangaceiros, admirava Lampião, que também o
respeitava, apesar da inimizade de ambos.
Cangaceiros
ainda vivos, como Ilda Ribeiro de Souza, a Sila, que mora em São Paulo, e
Manuel Dantas Loiola, o Candieiro, morador de Buíque (PE), participaram das
homenagens, que, na opinião deles, estão corretas. Ambos escaparam da batalha
de Angicos. Quando fugia sob cerrado tiroteio, Sila viu a amiga Enedina ser morta
com um tiro na cabeça pelos soldados. "Em meus dois anos no cangaço, vi
Lampião matar traidores e inimigos em combate, quando as chances são iguais
para os dois lados, mas nunca tive notícias de que ele assassinasse inocentes
ou desrespeitasse famílias", afirma.
Hoje um pacato
comerciante, Candieiro, de 83 anos, que há poucos anos se encontrou, no local
do massacre, com o velho inimigo Panta de Godoy, matador de Maria Bonita,
lembra que Lampião aparentava estar cansado das lutas no sertão. "Ele
dizia que só brigava se estivesse num apuro muito grande e não tivesse outro
jeito", revela. Vera Ferreira diz ver o avô famoso como um homem que não
podia agir de outra forma diante das circunstâncias que o levaram ao cangaço. O
pai, José Ferreira, foi morto pelo delegado Amarílio Vilar, inimigo de Lampião.
"Ele não foi herói nem bandido. Foi um homem valente, que, junto com seus
cangaceiros, enfrentou a injusta ordem social vigente. Se não fizesse isso,
seria um omisso, como tantos da época", afirma.
Casos do cangaceiro
- O matador de
Lampião, João Bezerra, morto em 1970, tinha, curiosamente, uma trajetória muito
semelhante à de sua vítima. Acusado de ter sido um dos fornecedores de armas
aos cangaceiros, Bezerra, entre outras coincidências, nasceu no mesmo dia e ano
de Lampião.
- Apesar de
ter vivido tanto tempo no cangaço, em alguns casos exterminando famílias
inteiras, como os Gilo e os Quirino, Lampião jamais conseguiu matar Zé
Saturnino, seu primeiro grande inimigo, e Zé Lucena, responsável indireto pela
morte de seu pai, e pela sua própria, como comandante de João Bezerra.
- Cangaceiros
e policiais das volantes usavam uma mesma forma de matar: o sangramento, em que
os enormes punhais eram enfiados na fossa clavicular esquerda - conhecida
popularmente como saboneteira. Esse procedimento, segundo os pesquisadores, era
copiado dos vaqueiros.
- Não há
registro de que o bando de Lampião estuprasse mulheres. Três cangaceiros foram
mortos pelos companheiros por mexer com moradoras de fazendas de coronéis
amigos.
- Extremamente
vaidoso, Lampião chegou a ler duas biografias suas, feitas quando ele ainda
vivia, e se orgulhava de ser comparado a Robin Hood.
- Algumas
testemunhas do massacre dos cangaceiros em Angicos, entre as quais o cangaceiro
Zé Sereno, defendiam a teoria de que a bebida levada pelo coiteiro (protetor de
cangaceiro) Pedro de Cândida estaria envenenada. Outros negam a versão.
- Depois da
morte do cangaceiro, surgiram inúmeras histórias, jamais confirmadas, de que
ele teria escapado do massacre. Seus grandes inimigos, os valentes moradores de
Nazaré (atual Carqueja), em Pernambuco, entre eles Davi Jurubeba, choraram
porque queriam tê-lo matado.
- Se tivesse
respondido a todos os processos que foram abertos contra ele, Lampião seria
condenado a mais de mil anos de cadeia, segundo pesquisas do juiz Assis
Timóteo.
Cabras de
Lampião
Cidade serrana
vizinha a Serra Talhada, terra natal de Lampião, Triunfo tem algumas
peculiaridades na história do cangaceiro: historicamente, os cidadãos mais
poderosos do simpático município sempre o protegeram. Nos dias de hoje, a elite
cultural e econômica de Triunfo continua defendendo o líder bandoleiro. Uma
casa, situada exatamente na divisa entre Pernambuco e Paraíba, de propriedade
do juiz Assis Timóteo, ilustra bem a situação: quando volantes da Paraíba
cercavam o imóvel, bastava os cangaceiros mudarem de cômodo, que os soldados
ficavam sem ação, com medo de invadir o estado vizinho. Os policiais
pernambucanos enfrentavam a mesma dificuldade.
Há casos,
citados pelo pesquisador Antonio Amaury, em que os grupos ficavam frente a
frente sem se hostilizar. O interesse por Lampião na cidade superou até
divergências político-partidárias. O juiz aposentado e vereador pelo PSB Ruy
Patu compõe, junto com a primeira-dama Lúcia Mello, do PFL, o também juiz Assis
Timóteo e a geógrafa Diana Rodrigues, o grupo dos "lampiônicos", que
se reúne uma vez por semana, usando roupas típicas, para estudar o cangaço.
Na terra natal
do cangaceiro, dominada pelo deputado federal Inocêncio de Oliveira, pesquisa
recentemente conduzida pelo Centro Cultural Cabras de Lampião concluiu que 79%
da população aprova as homenagens ao filho famoso. Na Fazenda São Miguel,
vizinha do antigo sítio Passagem das Pedras, onde nasceu Lampião, o que resta
de uma casa, toda esburacada por tiros, atesta a violência dos combates do
cangaço.
Preservada por
descendentes de Zé Saturnino, primeiro grande inimigo do bandoleiro, a casa
(foto), onde brotam, despreocupadamente, facheiros e mandacarus, plantas
típicas do sertão, foi palco de uma grande luta entre o bando de Lampião e
Saturnino, parentes e empregados. Como não conseguiu liquidar o rival, o
bandoleiro matou parte do gado e destruiu cercas e casas, causando-lhe grande
prejuízo. Segundo Anildomá Willamés de Souza, presidente da Fundação Cabras de
Lampião, uma ONG voltada à divulgação do cangaço, a prefeitura da cidade
pretende comprar a área para transformá-la numa espécie de sítio histórico.
O local onde
nasceu e viveu o cangaceiro famoso, nos dias de hoje, é uma das mais violentas
do país. Com população aproximada de 28 milhões de pessoas, segundo dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o semi-árido nordestino
detinha, há dois anos, quando foi feito o censo econômico, renda per capita de
R$ 2,5 mil, contra R$ 4,7 mil no Brasil como um todo. O índice de analfabetismo
na área chega a ser o dobro do nacional. Conhecida como polígono da maconha, a
região de Serra Talhada, especificamente, é muito perigosa, e poucos motoristas
se aventuram a viajar à noite nas mal policiadas estradas.
Até o
banditismo, que nos tempos do cangaceiro ainda mantinha uma certa ética, perdeu
totalmente o caráter. Com toda a polêmica sobre sua trajetória, talvez o
cangaceiro seja aquilo que afirmava, com seus versos sertanejos, o cantador
Ezechias da Rocha, o Zabelê: "Era brabo, era marvado,/ Virgulino, o
Lampião,/ mas era, pra que negar,/ nas fibras do coração,/ o mais perfeito
retrato/ das caatingas do sertão".
http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas_sesc/pb/artigo.cfm?Edicao_Id=29&Artigo_ID=84&IDCategoria=358&reftype=1
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