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sexta-feira, 30 de agosto de 2013

CANGACEIRO

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

Homem que carrega a canga. Mas canga não no sentido de tronco atravessado às costas, mas levando por cima dos ombros o peso da opressão, o fardo da exploração, a carga da submissão humana aos ditames das injustiças sociais e dos mandos governamentais e coronelistas. Mas nem de todos os coronéis, que se diga.

Sertanejo das brenhas do mundo. Sofrido até dizer chega, explorado até dizer basta, subjugado pelo poder político e econômico, esquecido de tudo, com serventia apenas para mostrar sua coragem para lutar. E foi assim que fez. Um dia foi chamado à luta e enveredou pelas caatingas construindo o seu próprio destino.

As motivações? Todas e muitos mais. Um Nordeste de latifúndios, de poder político encanecido pelas velhas e desumanas práticas, onde o pobre sertanejo era tido muito mais como objeto do que qualquer outra coisa. E por cima do matuto as imposições tributárias, as injustiças sombreando os mais fracos, a escravização sem precisar de chibata e grilhão.


Eis um homem desencantado com o seu meio, fugindo das perseguições, sendo ferido na sua honra, sendo aviltado pelos abusos policiais e das autoridades. E também as rixas pessoais, os desejos de vingança, as promessas e ilusões de um meio onde só cabia os mais valentes e destemidos. Tudo isso, e muito mais, motivou o passo na vida cangaceira.

Homem rude, iletrado, do mato, da mataria, das distâncias de tudo. Mas nem sempre assim. Muito cangaceiro sabia ler e escrever, tinha tino no juízo, sabia o que queria, possuía uma ideologia e conhecia bem o significado de sua vida e de sua luta. Um ou outro, como Cajazeira, era de família abastada. Percorrer as caatingas e viver debaixo de lua e sol, desafiando autoridades e enfrentado constantes perigos, eis a sina deliberada no mundo injusto e cruel.

Homem da terra, cheirando a sol, a suor, a sangue estancado da luta, a bicho do mato, a fumaça do fogo do coito, a chumbo do cano quente e enfumaçado. Mas também um destemido vaidoso, perfumado de qualquer loção, cheio de adornos e ornamentos dourados, com uma trova na língua e uma canção dolente cortando o silêncio das noites sertanejas enluaradas. E tantos amores embrenhados na cama da terra espinhenta.

Sertanejo de longa história, do passo catingueiro lá desde séculos passados. Desde o século XIX que começou a fazer história até sua saga ter fim já no século passado, depois da bala certeira dada em Corisco, lá pelos idos de 1940. Cangaceiro de bandos primitivos, como os de Lucas Evangelista, o Lucas da Feira; Jesuíno Alves Calado, o Jesuíno Brilhante; Antônio Silvino; e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião. E também o bando desgarrado de Corisco, o Diabo Louro.

De características inconfundíveis, vestia seu manto encourado, sua calça lonada, sua preferência azulada, seu brim desgastado na passarela de urtiga e cansanção, ponta de pau e espinho traiçoeira, vereda encoberta e mataria fechada. Dia e noite na luta e sempre no porte altaneiro, ainda que o brilho das joias e o colorido das roupas estivessem ofuscados pela poeira da lide.

Cabra valente de estética desafiadora para a vida difícil que levava. Chapéu de couro estendido, ovalado e com estrelas estilizadas ou medalhões de metal na porta frontal da aba. Um ou outro usava a jabiraca, que era um lenço envolvendo e descendo pelo pescoço. Encontrar um cabra assim nas caatingas já sabia o que era. Cangaceiro, seu moço, cabra valente sim.

Alpercata de couro cru, mais conhecida como “apracata de rabicho”, possuía a leveza apropriada para cortar os tantos caminhos difíceis e subir e descer as trilhas mais íngremes. E também mais fácil de virar a frente pra trás para enganar a volante sempre no encalço. Cartucheira cortando o peito, também cruzava o couro do embornal do ombro até a cintura. Um cantil também enfeitado, estilizado. Era tudo pesado, desde a roupa e adereços até chegar aos mantimentos que carregava. Falam em mais de vinte quilos.

Anéis adornando os dedos, alianças enfeitando o chapéu, cabelos mais alongados, muitas vezes repuxados na brilhantina ou óleo de coco. Costumava carregar peças de ouro e moedas no embornal. Não esquecia o perfume, a gaita ou qualquer outro instrumento. Armado até os dentes, o peso maior se dava por conta das armas e da farta munição que levava.


O armamento se diversificava, podendo ser revólver, pistola, mosquetão ou fuzil, sem falar no velho rifle Winchester, também conhecido como “papo amarelo”, mas sempre acompanhado da faca ou punhal. E tudo de marca famosa: Revólver Colt, Pistola Luger, Pistola Browning, Fuzil Mauser, Mosquetão Mauser, Winchester, Bergmann. Onde conseguia? Quase tudo trazido pelo coiteiro, a mando do coronel amigo e protetor. E logicamente protegido.
Uma vez aceito no bando, o nome de batismo dava lugar a um apelido. Dali em diante seria conhecido e chamado por nome de bicho, de pássaro, de elemento da natureza ou de qualquer outra denominação que mais parecesse com o alcunhado. E assim Jararaca, Zabelê, Corisco, Diferente, Mergulhão, dentre muitos outros. As mulheres geralmente mantinham seus nomes. Alguns cangaceiros continuaram com os seus nomes originais.

Mas falar em cangaceiro é falar principalmente naquele cabra, e também mulher bonita, que serviu ao bando do Capitão Lampião, o mais famoso de todos que enveredaram pelos caminhos nordestinos revirados de trincheiras e respingados de sangue. Até hoje é o bando de Lampião que sintetiza toda a história cangaceira e sua luta. Virgulino foi o maior dos cangaceiros e o seu bando o mais famoso e destemido.

Mas afinal, o que era mesmo esse tal de cangaceiro, era gente ou bicho do mato, pessoa ou desatinado, ser de carne e osso ou uma besta humana em busca da próxima vítima? Cangaceiro vivia com cega maldade, jogando criancinha para o alto e a recebendo na ponta do punhal, estuprando aonde chegava, ferrando quem encontrasse, alastrando todo tipo de terror por onde passasse?

Pelo não se encontra o sim, pela negação se encontra a verdade, pelo que o cangaceiro não era é possível conhecer o que ele foi. E o que ele foi, por mais que se atreva em dizer, sempre estará distante da crueza daquela realidade. Por isso que todo dizer ainda falta alguma coisa a ser dita.

Mas algumas coisas sopraram no vento da verdade e cimentaram na história. Não pela certeza, mas pela lógica do acontecido e hoje tão analisado e lido. Disso decorre não ter sido o cangaceiro um pistoleiro, um jagunço, um celerado bandido, um assassino a sangue frio, um matador de aluguel, um delinquente qualquer, uma bestialidade desordeira. Contudo, muitos, no exagero e na ignorância, procuram maculá-lo com as maiores infâmias do mundo.

Não, e não. A verdade só quer um pouco de luz. E não porque não assassinava por empreitada, não tocaiava desafeto de um mandante, não dava cabo de ninguém a troco de conto de réis. Não era um bandido qualquer que assaltava ou salteava à mão armada, não era um frio homicida que empunhava a arma na testa de um e apertava o gatilho, não se desgarrava do bando para praticar vilezas e atrocidades.

Também não era salteador, pois não se escondia pelas beiradas das estradas para assaltar quem passasse. Do mesmo modo, jamais agiu aos modos da jagunçada, fazendo serviços para os coronéis em troca de vintém e proteção. O pacto de proteção ao coronel era muito diferente. Era coisa de bicho grande, de coronel a coronel. Nesse meio se envolvia para atemorizar um dos lados. Também nunca foi um sicário, contratado para cometer qualquer espécie de crime.

Guardando as proporções, pode-se dizer, isto sim, que não se distanciava muito do bandoleiro, do facínora, do malfeitor, do errante, do justiceiro, do indignado. Bandoleiro porque vivia em bando e agia segundo os ditames deste, mas sem a intenção de praticar crimes comuns.

Facínora porque muitas vezes agiu com extrema maldade e perversidade. Ora, a situação exigia. Malfeitor porque contradizendo a lei de então, afrontando autoridades e confrontando policiais. Justiceiro errante pela cega ilusão de que sua luta inglória iria combater as injustiças que à época imperavam.

Mas como é normal acontecer nos grupamentos humanos, verdade é que nem todos possuíam uma índole aproximada. Alguns tentaram contradizer até mesmo as ordens do Capitão. E estes, por bebedeira ou nos instantes de maior liberdade de ação, certamente extravasaram, praticaram desmedidas atrocidades até com inocentes. Por isso que não é mentira o ferro abrasado de Zé Baiano no rosto da donzela canindeense. O JB fumegou na face da bela sertaneja.


Nem todos foram assim. A grande maioria certamente que não. Na vida que levava, fugindo de palmo em palmo, sendo caçado com fera perversa, tendo seus dias e suas noites tomados de sobressaltos, não lhe restava outra coisa senão reagir, confrontar, para continuar sobrevivendo. E quem não está disposto a ter morte certa, logicamente que mata. Por isso que muito gatilho foi apertado, daí que muita gente rolou de ribanceira abaixo.

Meu parente cangaceiro, irmão de minha avó Emeliana, simplesmente voou para não morrer naquele dia 28 de julho de 38, lá na Gruta do Angico. Com nome de passarinho, Zabelê bateu asas que ninguém mais teve notícias. Não sei se um dia alcançou o céu, mais que voou ele voou.

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.

Poeta e cronista
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