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domingo, 8 de setembro de 2013

O MENINO E O CALANGO

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

O MENINO E O CALANGO 

O calango não era nem daqueles pequenos lagartos acostumados a viver embrenhados nas moradias, subindo pelas paredes de barro ou se escondendo nas tocas existentes por todo canto. Não. Este era um réptil de mataria, com moradia por cima da terra e lajedos e sempre avistado por cima das pedras grandes.

Não há quem goste mais de tomar sol do que o calango. Sertões adentro e onde houver uma pedra robusta ali haverá de estar uma cabeça-de-frade e um calango. Estranhamente, o cacto achatado e de cabeça rosácea nasce por cima do rochedo e ali permanece uma eternidade como prova dos mistérios da natureza.

Já o calango sempre é avistado por lá porque é considerado bicho curioso demais, sempre atento ao que se passa ao redor. Além de não fechar os olhos um só instante, não para de balançar a cabeça de canto a outro. E se um predador chega por trás e lhe acerta o rabo, ali mesmo deixa o pedaço e foge como um foguete, ziguezagueando pela terra abrasada.

Foi numa dessas correrias que o calango foi parar na malhada da casa do menino. Tapera sertaneja, feita de barro, cipó e graveto como ripa, nem telhado possuía. Acaso chuva caísse por ali certamente um tanto empoçaria o barro do chão e o outro escorreria pelas folhagens secas. E dentro dela uma família sertaneja: o pai, a mãe e o filho.

Na correria que chegou, o calango se entocou numa loca de pedra que ficava bem ao lado da moradia. Seu objetivo era ficar no local o tempo suficiente para que seu rabo despontasse novamente, e seria coisa de não demorar muito. No dia seguinte, colocou a cabeça do lado de fora e avistou um meninote brincando pelo chão com duas pontas de vaca.


Percebeu o menino, ficou admirando seu jeito paciente de tanger sua boiada de dois, mas não foi percebida. No dia seguinte a mesma coisa. Quando sentiu que já estava refeito para novamente enfrentar aquele chão sertanejo cheio de pedras, espinhos e asperezas, então decidiu tomar banho de sol de corpo inteiro. E subiu na pedra, bem defronte de onde estava o menino brincando.

Dessa vez o pequeno sertanejo lançou-lhe um olhar mais que admirado. Já havia avistado muitos calangos, bribas, catengas, lagartixas e até teiús, mas não daquele modo. Pela primeira vez sentia que o animal não se assustava, não saía em disparada, não se danava no oco do mundo. Pelo contrário, aquele calango parecia olhar bem no seu olhar, mirando e admirando como a um velho conhecido.

O sertanejinho colocou as pontas de lado e se arrastou até mais perto da pedra. E o calango parecia imóvel e de olhos nele fixados. Foi quando ouviu da miúda boca sertaneja que era melhor ele ir embora, pois diante daquela situação de fome, certamente ele iria ser assado se fosse encontrado por seu pai. E em seguida espantou-o para que descesse da pedra e seguisse adiante.

Contudo, no dia seguinte e na mesma hora, eis que o pequeno fazendeiro de ponta de vaca olha de lado e lá encontra o altivo réptil em cima da pedra, mirando-o. E quase repetiu a advertência: Gostei muito de você, viu seu calanguinho. Até que eu ia achar muito bom se você descesse daí e também quisesse brincar comigo. Mas hoje não há nada pra comer em casa e se meu pai aparecer você vai ser comido com farinha seca. Então vá embora, vá! E novamente fez com que o outro sumisse dali como raio.

Mas a mesma cena no dia seguinte. Dessa vez o calango achou o menino mais triste, mais cabisbaixo, parecendo choroso, agoniado. Voz tivesse para perguntar o que tanto lhe afligia. Também estranhou foi o fato de não ser repreendido, de não ser forçado a pular da pedra e ir embora. Estranho demais, pensou o calango. E desceu da pedra devagarzinho e foi se juntar ao menino. Os seus olhos estavam molhados, chorosos, logo percebeu.

O calango ali continuou, se fez de brinquedo, correu de canto a outro, tudo tentou para alegrar o menino. Mas este calado estava e calado ficou, mas só até o momento em que o rastejante quis subir na sua mão. Então resolveu segurá-lo cuidadosamente, levantou até os olhos e disse: Pela última vez, não quero mais você aqui de jeito nenhum. Como amigo peço que vá embora agora mesmo se não quiser ser encontrado e acertado por meu pai. Hoje foi a vez de minha mãe chorar de barriga vazia, mas não por ela. Você sabe por quem. Então vá.

O calango não voltou no dia seguinte. Mas no outro sim. A mãe estava prostrada enfraquecida numa cama e o pai em tempo de enlouquecer, sem saber o que fazer pra encontrar qualquer alimento. E foi quando o seu filho entrou levando à mão um calango morto. Toma pai, asse na brasa e dê a mãe. Disse chorando.

Rangel Alves da Costa, nascido em 1963, é natural de Poço Redondo, no Alto Sertão Sergipano do São Francisco. É advogado e escritor, e reside em Aracaju. Já publicou os seguintes livros: Estórias dos Quatro Ventos (crônicas), Memória Cativa – O Sertão em Prosa e Verso, Sertão - Poesia e Prosa, Tempestade (romance), Ilha das Flores (romance), Evangelho Segundo a Solidão (romance), Desconhecidos (romance), Todo Inverso (poesias), Já Outono (poesias), Poesia Artesã (poesias), Andante (poesias), O Livro das Palavras Tristes (crônicas), Crônicas Sertanejas (crônicas), Crônicas de Sol Chovendo (crônicas), Três Contos de Avoar (contos), A Solidão e a Árvore e outros contos (contos), Poço Redondo – Relatos Sobre o Refúgio do Sol, Da Arte da Sobrevivência no Sertão, Estudos Para Cordel (prosa rimada sobre o cordel). Participou também da coletânea Gandavos - Contando outras histórias. Possui outros livros prontos para publicação, dentre os quais Nas mãos de Deus: um romance de injustiça e Entre a Ficção e a História - O Cangaço Imaginário. Colabora com artigos para o Jornal do Dia, de Aracaju. Diversos sites também publicam seus textos.

Poeta e cronista
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