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sexta-feira, 2 de maio de 2014

NAQUELAS VEREDAS DO SERTÃO CANGACEIRO

Por Rangel Alves da Costa*

Imagine o seguinte cenário: Mata fechada, tomada de catingueiras, aroeiras, angicos, quipás e tantas outras árvores de galhagens pontudas, ameaçadoras e traiçoeiras. Mais rente ao chão, urtigas e cansanções, cabeças-de-frade, xiquexiques, tocos pontiagudos e perfurantes, cactos agulhados, carrapichos, tufos com seus habitantes venenosos e indesejáveis. Pontas de pedras miúdas, lajedos cortantes, espinhos abertos em flor, cipós se entrelaçando, grotas e armadilhas. Tudo na natureza cerrada ou por veredas de difícil caminhada. E o calor insuportável se em tempos de estiagem, ou lamaçais escorregadios se em épocas de trovoadas. Além disso, os caminhos perigosos e traiçoeiros, as curvas perigosas, os olhos que pareciam escondidos por dentro da mataria. As incertezas em cada passo, o aperreio em cada instante da vida, seja debaixo do sol, seja debaixo da lua.

Imagine a seguinte cena: Um monte de gente caminhando apressadamente, cansada, esbaforida, tendo que seguir sempre adiante custe o que custar. Pessoas famintas, sedentas, sem tempo de parar para buscar qualquer alimento no embornal ou procurar um fio d’água perdido na mata. Homens correndo, homens fugindo, se entrincheirando, avançando, recuando, atacando, se movendo de canto a outro sem parar. Chovesse ou fizesse sol, todos cobertos com roupas pesadas, com armas, cartucheiras e embornais descendo dos ombros, cruzando os peitos, alojadas nas perneiras. Sempre em alerta, atentos ao menor barulho surgido na caatinga, muitas vezes tinham os olhares voltados apenas para frente e para os lados, para os tufos ao redor, sem ter tempo de dar a menor importância ao que seria encontrado ou pisado pelas grossas alpercatas de couro cru.


Agora imagine a seguinte situação: Na pressa do passo, no avanço rotineiro e até descuidado, ou mesmo já mais lentamente e com esmerado cuidado pelos barulhos suspeitos ouvidos, pela falsa imitação de canto passarinheiro escutado instantes atrás, de repente e alguém lá na frente, aquele que está com a função de abrir caminho, para e levanta o braço direito. Ou apenas parando para gesticular, fazer sinais, apontar direções, ordenar que parte do grupo avance atacando por um lado, enquanto outro deve adentrar na mata pelo outro lado, de modo que o inimigo se veja cercado e sem saída. Ou ainda soltando um grito de comando para recuar, avançar, atacar, se dissipar ou, já sentindo a presença do inimigo e o pipocar de suas armas, querendo dizer que mais uma refrega de vida ou de morte está para acontecer. E num segundo os tiros partindo de todas as direções, gente se entrincheirando rente ao chão, alguns procurando arvoredos ou pedreiras como proteção, outros correndo quase agachados, mas sempre com armas empunhadas. E atirando, contra-atacando, tendo o corpo lanhado da mata impiedosa, muitas vezes com o corpo sangrando pela bala desnorteada que não pôde evitar. Gritos, berros, sons terríveis das armas cuspindo fogo, gemidos abafados, últimos suspiros. A morte. Mas também a continuidade da vida.

E certamente as cenas seguintes: Após colocar o inimigo em recuada, afligi-lo de grandes perdas ou colocá-lo em fuga desembestada por cima de troncos e catingueiras, ter de se refazer no que restou, lamentar os mortos, tentar salvar os feridos, nada parece ainda seguro. Não raro que sequer há tempo para olhar pra trás, para sentir as perdas, para arrastar ou levar nos ombros aqueles que clamam socorro. Sabem que mais adiante a mesma luta será travada, as vidas estarão novamente entregues ao comando do destino Tantas vezes não há vencido nem vencedor, apenas opostos que lutam ferozmente e são vitimados de lado a lado. Cada vitória é comemorada na própria vida que milagrosamente foi preservada, mas não se sabe até quando. Dependendo das circunstâncias, os mortos são abandonados ali mesmo nas veredas da luta, deixados à sorte dos animais carnicentos e das cruzes invisíveis. E um rastro de sangue vai ficando para trás, demarcando a terra sertaneja nas costumeiras vinditas entre cangaceiros e volantes.

Parece filme, relato de uma saga travada nos carrascais nordestinos, um épico medonho que teve seu auge nos tempos de Lampião e seu bando, e com a polícia volante como personagem secundária, mas não menos importante. A película da história não afasta a ideia de que em muitas ocasiões e contextos tenha sido realmente assim. Ora, o cenário não poderia ser outro, as cenas também, e os personagens aqueles homens escolhidos pelo destino para combater as ilusões de um tempo injusto.

Filme longo, penoso, trágico, sangrento, abominável para uns, plenamente justificado para outros, mas sempre memorável em todos os sentidos. Mesmo que se negue o valor do cangaço, a coragem daqueles homens do sol e a sua luta infinda, não se pode deixar de reconhecer a grandiosidade do fato histórico. Eis que o cangaço representou o despertar do homem comum, totalmente renegado pelo poder vigente, e oprimido na sua própria terra, para a possibilidade de reconhecimento e valorização através da luta.

Luta inglória, sim. Mas o cangaço não buscava vitória. Lampião não buscava troféu. Talvez apenas mostrar que o sertanejo, igualmente ao seu sol, também se levanta.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Um comentário:

  1. Anônimo17:06:00

    Caro Mendes: Estive falando com Rangel, neste seu texto, que tudo que ele escreve, para mim é importante. Contudo, os escritos sobre o cangaço - é claro -, a contribuição para mim é bem maior. ACONTECE QUE ELE ESCREVE É PARA TODO MUNDO!
    Antonio Oliveira

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