Seguidores

domingo, 12 de abril de 2015

O VELHO CANGACEIRO

Por  Rangel Alves da Costa*

Não sei se verdade, mas conto o que me contaram...

De moço alto, bem apessoado, com a força dos anos e a disposição dos destemidos, o que se tinha então era um corpo envelhecido, alquebrado, tomado das dores e marcas da idade. Além, logicamente, das ferraduras na alma e das cicatrizes das batalhas sem fim.

Mas quem era esse homem já tão carcomido pelo tempo, com feição de mandacaru esturricado, levando seu tempo em devaneios, fantasias e assombrações? Quem era esse velho senhor esquecido nas distâncias do mundo sertanejo, tendo agora como consolo a solidão num velho casebre de barro e cipó, ameaçando desabar a qualquer instante?

A História não permite revelar seu nome, nem o seu nome familiar nem o seu apelido nas lides debaixo do sol. E assim porque homens existem que devem ser eternizados nos seus momentos de pujança na luta, ainda que a sua batalha continue sendo incompreendida e quase nada tenha valido senão para a própria História.

Mas muito posso revelar sobre o tal homem, sobre o velho solitário, o afligido e desvalido sertanejo. Era um cangaceiro. E digo que era um cangaceiro – e não ex-cangaceiro - porque igualmente ao soldado japonês que permaneceu solitariamente ilhado durante quase trinta anos e após ser encontrado ainda achava que a 2ª Guerra Mundial continuava sendo travada, aquele velho continuou desconhecendo o desfecho final daquele 28 de julho de 38, lá pelas bandas da Gruta do Angico.


Na verdade, ele era um dos integrantes do bando de Lampião que havia acoitado no Angico depois da longa caminha desde as terras baianas. E se salvou por pouco, ainda assim lanhado e completamente atordoado sobre o inesperado acontecido. Nunca soube da volante comandada por João Bezerra cercando o coito nem do que aconteceu ao final, pois recordava apenas ter despertado de uma noite de pesadelos já com o barulho e a gritaria por todo lado e a bala zunido faminta.


Ao levantar já de arma à mão e procurando avistar o inimigo, não tinha tempo nem de mirar. Atirou e atirou muito, porém não sabe se acertou algum inimigo, mandacaru ou folhagem de catingueira. Quando ouviu alguém gritando que haviam acertado Maria e o Capitão e em seguida dizer que “arriba”, então correu abaixado, se protegendo nas pedras e nos tufos de mato, em qualquer direção. O “arriba” era para correr dali, e assim fez. O que teria deixado pra trás?


Não sabia que Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros haviam morrido. Muito menos sabia que aquele cerco de emboscada havia selado o fim do cangaço. Não sabia que os sobreviventes do bando ou tinham fugido ou tinham se entregado às forças policiais. Não sabia que a sua luta tinha terminado ali e nem que não fazia mais parte de bando cangaceiro. Por isso mesmo continuou cangaceiro pelo resto da vida. Mas por que assim aconteceu?


Na sua fuga do campo sangrento, adentrando cada vez mais na mataria, sequer sabia quantas léguas tinha percorrido até desabar de cansaço e dor debaixo de um umbuzeiro. Acordou atordoado e se perguntando o que fazia ali sozinho, quando toda cangaceirama deveria estar arranchada ao redor. Levantou num esforço danado e foi passando a vista pelos lados, de arma em punho, tentando avistar qualquer coisa. Avistou no alto um carcará e começou a entristecer e a se dar conta de que estava sozinho. Mas o bando cangaceiro vai logo aparecer, dizia a si mesmo. E tinha certeza disso.

Esperou ali durante dois dias e duas noites. Então decidiu entrar na mataria e seguir andando sem destino, sempre com a certeza de que a qualquer instante o bando seria avistado e o grupo novamente reunido para a continuidade da luta. Mas nada era avistado senão um sertão parecendo lutuoso, entristecido, tomado de espanto. Desalento era o seu nome naquele desvão de vida e caminhada. Desalentado, porém sem perder a obstinação pelo seu compromisso de mundo. Ora, era cangaceiro e nada lhe causaria fraquejamento. E foi com tal determinação que entrou num velho casebre abandonado naquelas distâncias sem fim.

E no velho casebre de cipó e barro foi fazendo moradia, sempre esperando o dia do reencontro com o bando do Capitão. Sentia uma saudade danada de suas ordens, de seu olhar atravessado dizendo tudo. Mas o tempo foi passando sem nenhum sinal de cangaceiro ou volante. Tudo estava estranho demais. Mas aquele silêncio poderia ser rompido por uma chuva de balas a qualquer momento. Por que os cangaceiros estavam por ali e a polícia também. Assim imaginava.

Na ausência do bando estaria ali para lutar com quem aparecesse. E por isso mesmo continuava usando farrapos da antiga vestimenta e empunhado um mosquetão sem valia. Já estava tomado de insanidade, numa loucura que foi se achegando como volante traiçoeira. Até que um dia, já envelhecido e sem qualquer noção da própria existência, juntou forças e se meteu caatinga adentro gritando que iria se juntar ao bando. “Capitão, Capitão, vim logo que recebi o recado. Cadê todo mundo que num vejo ninguém?”.

E ninguém sabe que fim levou o velho cangaceiro. Não retornou ao casebre nem foi encontrado na mata. Somente aquele carcará sabe o seu destino. Somente o carcará tem o seu destino.

Poeta e cronista

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário