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quarta-feira, 7 de outubro de 2015

OFÍCIO DAS ESPINGARDAS

Por Rangel Alves da Costa*

Falar em ofício das espingardas é remeter aos tempos de um sertão de face mais verdadeira que agora, pois mais valente, mais corajoso, mais destemido. Dizem também de um sertão violento, cruel, respingando sangue dos enfrentamentos das injustiças e trovejando fogo pelos canos jamais acovardados pelas perseguições e tiranias. Aquele mesmo sertão de cangaceiros, coronéis, jagunços, coiteiros, volantes e tantos outros cabras de sangue no olho.

Falar em ofício das espingardas é reencontrar um cenário hostil, de paisagem carcomida pela seca grande e pelo abandono do homem, onde o destino do desafeto estava na mira escondida nos tufos do mato, detrás nos arbustos espinhentos e nos emaranhados das catingueiras e cipós. Ali a tocaia sedenta, a emboscada faminta, o ofício de derrubar a vida e chamar aos restos os bicos carnicentos dos urubus.

Falar em ofício das espingardas é falar em todo tipo de arma e munição que tornaram aqueles sertões num verdadeiro arsenal. Baionetas, garruchas, bacamartes, carabinas, clavinotes, mosquetões, parabéluns, pistolas, rifles, revólveres, fuzis e muito mais. Mas também adagas, facas, punhais, facões, lâminas afiadas que tanto serviam para abrir a mata e afastar as galhagens espinhentas como para sangrar o bicho e o inimigo. Um tempo de “papo amarelo”, de “costureira”, “de beijo quente”, de “bichinha”. Sem uso ficou a pistola de Lampião naquele alvorecer sangrento de 28 de julho de 38 nos carrascais do Angico.

Falar em ofício das espingardas é abrir o grosso livro dos tempos idos e nas suas páginas carcomidas – porém tão realistas como as cabeças decepadas dos cangaceiros - encontrar as motivações para um sertão levantado contra as injustiças e opressões, as perseguições dos poderosos e um contexto onde o pobre era escravizado tanto pelo Estado como pelo curral. Como fizera o senhor do engenho com o negro de além-mar, também o senhor dono do mundo quis cuidar daquele desvalido de além-túmulo.

Falar em ofício das espingardas é ler nos testemunhos da história a grandeza sertaneja diminuída pelo subjugo do homem da terra. Homem-bicho, homem-foice, homem-enxada, homem-escravo, homem-nada. E do outro lado o poder do homem-tudo, do dono do latifúndio, do coronel de patente política e conveniência, do dono de currais com vozes silenciosas e amedrontadas, do dono de boiadas e de cabeças de gente, do senhor absoluto da vida e da morte, sempre lastreado pela outorga mandonista do próprio Estado.

Falar em ofício das espingardas é recordar o pobre sertanejo tendo de sair de sua casinha de cipó e barro e abandonar seu pedacinho de chão pela ordem raivosa do coronel. Ou vende tudo por dois vinténs ou não terá nem cruz sobre a cova. É relembrar o homem moço já envelhecido por força do trabalho desumano nas terras do poderoso. Ou ganha o pão da miséria ou mais miserável ainda haveria de ser. É recordar a voz que se insurgiu contra os grilhões do poder e por isso mesmo tombou numa curva qualquer de caminho.

Não há que falar em ofício das armas sem avistar o poderoso coronel ordenando sobre o destino e sina do pobre e extenuado sertanejo. O mesmo coronel que acolhe ao seu redor o rebotalho de assassinos e imprestáveis e os transforma em fiéis escudeiros e paus-mandados para espalhar a sangria. Paga qualquer moeda, promete proteção perante os crimes cometidos, fornece armas e munição, e depois lê a cartilha das inimizades e desafetos e diz que a qualquer momento estejam prontos para agir. E assim os inimigos são afrontados, os inocentes perseguidos e qualquer um podendo cair nas graças da mira de uma carabina.

A verdade é que era um sertão de muitos ofícios. O ofício da terra, o ofício da sobrevivência, o ofício do ganha-pão, o ofício do enfrentamento das secas e estiagens, o ofício do medo, o ofício da submissão, o ofício da incerteza. Mas também o ofício da coragem, da valentia, do destemor. E foi pelo ofício do fervor do sangue correndo nas veias que incontinenti brotou o ofício das armas, das espingardas, de qualquer uma que cuspisse fogo e fizesse prova contrária do troco merecido. Eis que homem valente é o sertanejo e se nega a suportar uma desfeita quando pode resolver de outro modo. Então a guerra está feita.

Tem-se, pois, que o ofício das espingardas simboliza, a um só tempo, tanto a vida como a morte vida. Ora, carregar uma arma permite a continuidade e também o fim. E naqueles idos de violência, tanto servia como proteção como para afrontar o inimigo. Representa ainda um ciclo nordestino onde o estampido das armas contou a própria história de um povo construindo sua identidade através de guerras abertas, conflitos sociais e enfrentamento das situações as mais adversas.

O cangaço nasceu assim, do ofício das espingardas. Um dia alguém deu voz ao seu sofrimento pelas injustiças e perseguições e decidiu enfrentar o mundo e o poder ao redor. E depois mais um, e ainda mais outro, e de repente estava formado um grupo de rebelados. Mas a coragem e o destemor nada significavam ante a belicosidade daqueles tidos como inimigos. Então lançaram mão das armas e se entrincheiraram nos escondidos e veredas daqueles sertões de outra. E nunca se viu tanto cuspir fogo como a partir daí. Nunca se viu tantas espingardas no seu ofício.


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