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segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

CORONEL ISMERINO BADARÓ CONTA TUDO (E DEPOIS CHORA. E DEPOIS MORRE)

Por Rangel Alves da Costa*

Coronel Ismerino Badaró, Senhor da Coivara Grande e arredores, era homem de poucas palavras. Só abria a boca para ordenar. E o mando saído de sua boca era coisa de ser cumprida e comprovada. Muita orelha e dedo - e até cabeça - já chegaram à sua presença como prova do serviço feito, e bem feito. Corria o risco de perder orelha, dedo e cabeça aquele jagunço que fielmente não cumprisse as ordens do patrão.

Mas seu silêncio era igualmente perigoso. Quem o avistasse cabisbaixo, ou mesmo mirando as distâncias das terras sem fim, andando de lado a outro, logo imaginava que coisa boa não estava sendo matutada. E que também não demoraria muito para que o chamado desvendasse o mistério, pois certamente uma ordem seria dada. E para ser desempenhada antes que o cuspe secasse. O pior é que nada de bom se esperava daquele que era o mais potentado entre todos que ostentavam a patente de mando na região.

Quando o Coronel Ismerino gritou por Carniça, o seu mais confiado jagunço, este logo riscou a seus pés igual a cavalo adestrado, manso. Mas era uma fera. E o matador, depois de colocar o chapéu sobre o peito e engolir o cigarro de palha que restava no canto da boca, logo perguntou em que podia servi-lo. Na sua mente, a pergunta certa era sobre quem deveria morrer daquela vez. Mas a resposta ouvida fez surgir um espanto descomunal. “Dessa vez não vai ter tocaia, emboscada, nem tiro nem sangue. Só quero que me acompanhe até a varanda para ouvir algumas coisas que tenho a dizer. Venha sem aperreio que dessa vez o inimigo é outro, e coisa que eu mesmo resolvo”.

Seguiram até a varanda, ou um grande alpendre descendo das paredes térreas do casarão, onde o sombreado era garantido a qualquer momento. Ali, geralmente ao entardecer, o coronel se amoitava assuntado sobre a vida e a morte. Sentado numa cadeira de balanço ou em pé batendo na madeira com uma bengala adornada de pedrarias, o poderoso senhor nordestino chamava ao seu destino aquilo que desejava como sina. Era quando abria os velhos baús para espalhar fantasmas e recordações.

Apontou uma cadeira ao jagunço e este não pensou duas vezes, mas antes mesmo de se ajeitar no assento foi logo perguntando se o patrão já estava decidido a mandar matar o Coronel Licurguino, seu desafeto maior por aquelas bandas. Esperou uma resposta que veio mais que demorada. E antes de responder mandou que o seu cabra de confiança lhe trouxesse uma garrafa de cachaça adormecida nos anos. O coronel se serviu de dose e meia e disse ao outro que não se acanhasse de beber o quanto quisesse. Depois acendeu um charuto, estendeu a ferrugem dos olhos a qualquer lugar no meio do tempo, então começou a falar:


“Hoje não vou lhe chamar de Carniça. Seu nome é Aniceto e é assim que foi vou lhe tratar. Pois bem Aniceto, eis aqui um velho homem incompreendido. Um homem patenteado de coronel pelas forças políticas, dono de terra de não acabar mais, influente em tudo que pela região ponteia, fazedor de deputado e governante, amigo dos de lá de riba, mas um pobre coitado. Sim Aniceto, um pobre coitado. Quando herdei isso aqui do meu velho pai e fui alargando minhas terras por todo lugar, eu pensei apenas em ser um homem de posses. Mas a danada da riqueza acaba chamando tudo o que não presta para o seu lado. Logo me viram como o homem mais poderoso da região e tantos e mais tantos logo quiseram tirar proveito da situação. E gente grande, do meio político e do mando lá em riba. Entonce passei a ser usado por essa gente falsa e aproveitadora. Coronel pra cá, coronel pra lá, naquela conversa de bajular pra se aproveitar. Quando o povo me chamava assim eu não me incomodava não, mas com gente do poder era diferente. O povo chamava por ignorância, mas eles por esperteza. Mas o pior foi quando me deram um papel confirmando o coronelato, com poder de vida e morte na região, e em troca eu tendo de dar apoio político. E daí em diante comecei a maltratar as pessoas, coisa que eu não fazia antes. E passei a maltratar para que o medo tornasse todo mundo cativo no voto. Mandava ameaçar, prender e bater, de modo que o povo nem pensasse duas vezes em atender minhas ordens. Se era pra votar num candidato, então tinha de votar, a todo custo. Mas também, principalmente em época de eleição, despejava comida na casa de qualquer um, oferecia esmola, caixão de defunto e tudo o mais. Fazendo assim, não só colocava a pobreza como num curral, encabrestado, como evitava que pendesse para o lado dos inimigos, também poderosos e agindo do mesmo modo. E foi para manter o povo encabrestado e lutando contra os inimigos, que aos poucos fui me tornando um desalmado, um bicho com todas as armas na mão...”.

Parou um instante, tomou outra dose e prosseguiu. Apenas ouvindo, sem entender o porquê de o patrão estar relatando aquilo tudo a um jagunço, Carniça ficava imaginando aonde ele queria chegar. E ouviu:

“Foi pra manter o poder, pra dizer quem mandava aqui, que passei a ordenar que o sangue jorrasse. Como vosmicê bem sabe, mandei matar coronel intrometido, mandei matar jagunço de outro mando, mandei matar todo aquele que ousasse me desafiar. E até inocente morreu. E pra que tudo isso Aniceto, pra que tudo isso? Pelo voto, pelo mando, pra ter cada vez mais terra, pra eleger político da capital e lá de riba, e depois viver sem qualquer prazer na vida. E como fazer uma fera voltar a ser gente depois de tanta judiação?...”.

A voz embargada, os olhos marejando, o coronel chorava. Não prosseguiu. Puxou um lenço do paletó de linho branco, levou aos olhos, e em seguida gesticulou para que o jagunço saísse dali. As sombras da noite chegavam. Tudo num estranho silêncio ao redor. No alpendre do casarão apenas o vulto do coronel ainda sentado na cadeira. E assim amanheceu, porém sem vida. E que coisa mais estranha ser encontrado um rosário em suas mãos.

Poeta e cronista
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