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quarta-feira, 2 de março de 2016

UM BARCO NO SONHO

Por Rangel Alves da Costa*

Toda vez que sonha chega há um barco dentro do sonho. Toda vez que sente pesadelo o barco naufraga e se vê à deriva.

Não precisa fazer exercício de interpretação para compreender o significado de um barco dentro de um sonho. Até porque o barco é colocado pelo sonhador e não pelo sonho.

Quando adormece e uma névoa de sonho vai se aproximando, logo procura saber se tem um barco ou não. Acaso não tenha, manda a névoa de sonho em direção ao primeiro cais.

E no cais da memória, onde sempre há um barco de partida levantando vela, afasta da margem a embarcação e aponta a distância verde e azulada na linha do horizonte e além.

Não somente no sonho como nos momentos que o antecedem. Ao deitar, logo começa a mirar para o alto. E lá em cima sempre um mar no telhado, sempre uma barco no cais.

De olhos abertos, mas envolto em viagem, fica imaginando o barco partindo rumo ao desconhecido. É a viagem no pensamento, o desejo de experimentar novas realidades.

Com os olhos ainda abertos, nada mais existe ao redor. O barco segue no voo de gaivotas, vencendo barreiras, se distanciando cada vez mais. E muito deverá encontrar.

Fugindo de seu instante noturno, simplesmente sonha de olhos abertos. Não quer estrada nem asas, não quer montanha ou jardim, mas um barco para singrar sem destino.

Uma das coisas boas da vida: sonhar, ainda que de olhos abertos. E melhor ainda: fugir da realidade num barco cujo cais de partida está logo adiante, no telhado do quarto.

É neste barco que se desprende do cansaço, dos problemas, das fadigas cotidianas. Precisa viajar para viver, precisa da ilusão para continuar pulsando, precisa sempre sonhar.

Precisa ir além de tudo, da conta, da fatura, do calendário, do relógio, da receita, da bula cotidiana. Depois de um dia inteiro na dureza da luta, então surge o cais com seu barco.


O ser humano necessita dessas ilusões para suportar as agruras reais. Ninguém merece simplesmente deitar e acordar com os mesmos problemas. Há um instante de querer viajar.

É no instante da viagem que sai de si. Caminha até o cais pelo olhar, encontra o barco no olhar, segue adiante no mar que encontra no olhar. E vai até onde desejar chegar.

E assim, nessa viagem que conforta alma e enternece o espírito, numa leveza de onda boa, de calmaria e canto, como boa música que faz voar, então vai aos poucos adormecendo.

E no sono o mar continua, o barco continua, a viagem continua. E ao sonhar já encontra na mente seu leve destino: remansando, balançando nas águas, sentindo o mar.

Não deseja encontrar uma ilha e seus nativos, não deseja encontrar um porto e seus marinheiros, não deseja encontrar sereias chamando ou penhascos. Apenas seguir no sonho.

Também não deseja encontrar tempestades, vendavais, turbilhões, nada que ameace sua calma viagem, sua calmaria sem pressa. É que o sonho precisa ser brando, terno, singelo.

As saudades não vão neste barco. Os amores desfeitos e os adeuses chorados também não possuem lugar neste barco. Não quer sofrer numa viagem assim, apenas seguir contente.

A noite avança, os minutos e as horas vão passando, irrompe a madrugada, o galo canta, mas está noutra realidade. Numa viagem boa não se deseja logo retornar.

Mas o cheiro da maresia, a força do vento, o leve vai e vem da embarcação e o tempo nas águas, tudo vai cansando o viajante, o sonhador. Então sente que precisa descansar.

Deita no barco e adormece inteiro. Deixa que o barco siga agora sozinho o seu destino. Certamente singrará mansamente até que acorde e prepare o percurso de volta.

Dorme um sono profundo. Nem gaivotas nem barulho das ondas conseguem despertar. Até que uma luz brilha no seu olhar: um farol de cais, no cais de partida e de chegada.

Mas não é um farol, e sim o despertador. Então desce do barco, caminha pela areia e retoma o seu mundo, o seu dia, sua realidade. E vai abrir a janela para o sol entrar.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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