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terça-feira, 31 de maio de 2016

CAMINHOS ANTIGOS

*Rangel Alves da Costa

Olha só que coisa mais sem pé nem cabeça. Eis que sonhei com o Padre Mário apontando em correria, subindo num cavalo alazão de um pulo só, depois tomando rumo da Praça da Matriz e daí enveredando pela Rua Deoclides Lucas. E umas seis ou sete casas após, refrear o animal para gritar: Acorda Marizete!

Marizete dormia em sono profundo, certamente cansada dos tantos anos de ofícios e passos na sua fé. Já muitos anos atrás e ela virando a noite e descortinando a manhã velando o Cristo nas sextas-feiras santas antigas. Enquanto a cidade adormecia, ela e mais tantas em rezas, ladainhas e orações. Mazé de Iracema, Dona Maria José de Zé Preto, Geovanete, Dona Peta e tantas outras vozes afinadas pela devoção. “Sede em meu favor, Virgem soberana, livrai-me do inimigo com o vosso valor. Glória seja ao Pai, ao Filho e ao Amor também, que é um só Deus em Pessoas três, agora e sempre, e sem fim. Amém”.

Ecoa-me na memória tanta beleza em um povo humilde. Hoje a Igreja Matriz está muito diferente, bonita, resplendorosa, mas noutros idos era um templo pequeno, com três portas estreitas à frente, duas de lado e um interior sem muito espaço para os fiéis. Ainda assim já com outra feição daquela em que Padre Arthur Passos celebrou missa na presença de Lampião e seu bando. A pedido do próprio cangaceiro e de China do Poço, permitiu que a cabroeira adentrasse ao templo para o ofício, mas com a condição de que as armas pesadas ficassem do lado de fora, posicionadas no pé da parede.

Talvez por isso mesmo, imaginando a presença dos cangaceiros diante do altar, Alcino passava lentamente ao redor da matriz. De chinelo havaiana nos pés, mordendo a gola da camisa, ou mesmo cantarolando baixinho uma velha canção cabocla de Tonico e Tinoco, ele seguia absorvendo cada passo na terra que tanto amava. Apaixonado pelo seu sertão, pela sua gente e sua história, rumava em direção ao assento da praça e lá se punha a meditar sobre aquele mundo tão belo e tão esquecido. E depois rabiscava sobre aquele incompreendido sertão.


Infelizmente, sempre um incompreendido e renegado sertão. Até mesmo por parte de muitos de seus filhos, o que é mais doloroso. O filho de hoje só quer viver o presente, curtir, viver o imprestável de cada descartável instante. Perguntem ao jovem pelo forró, pela sua história, pelo seu passado. Pouco ou nada sabe. Parece ontem, mas muitos sequer recordam mais do Forró de Miltinho. E Miltinho, fabulosa figura humana, sempre merecedor de uma grande homenagem, tudo fez para que a tradição forrozeira de Poço Redondo não acabasse. Com sua partida, as festas de agosto e outras festas ficaram órfãs do verdadeiro pé-de-serra, do ralabucho e do chinelado.

As festas antigas, aí sim, é que eram festas. Mesmo que de vez em quando Doutor Heraldo da Serra Negra entrasse com cavalo e tudo pelos salões, nada tirava o brilho e o prazer dos sons das sanfonas, dos zabumbas e dos triângulos. Há sempre que se reverenciar uma gente que, com sua arte, tornou o sertão mais alegre: Zé Aleixo, Zé Goití, Dudu do terno de linho branco, Agenor da Barra, Dida. E ainda ouço Zelito de Pão de Açúcar, do forró de Zé Aleixo, batendo o triângulo e cantando: Olhe eu não posso ver ninguém chorar, porque vem logo uma vontade em mim, quem foi que disse que não chora por amor, pois os meus olhos já chegaram ao fim...

Também ainda ouço o carro-de-bois gemendo pelos estradões, avisto o animal esquipando pelas veredas, ecoa-me o velho aboio e a velha toada. Mas tudo parece distante demais. E está, pois assim quis o homem. Não temos mais Dionísio para preservar nossas tradições de cavalhadas, não temos mais Miltinho para salvaguardar o verdadeiro forró. Não temos mais Alcino para cantar, em prosa e verso, seu Poço Redondo. E como faz falta esse passado onde a gente sertaneja em tudo se reconhecia.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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