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quarta-feira, 28 de setembro de 2016

O MAIS BELO RIO

*Rangel Alves da Costa

Nada mais citarei acerca da tragédia com o ator global nas águas do Velho Chico nem das inúmeras teorias conspiratórias envolvendo o episódio. Cada um compreende o fato e procura explicá-lo a seu modo, pautando pelo entendimento e conveniência. Uma coisa só a dizer: que não ousem transformar o rio em vilão ou colocar forças maléficas sobrenaturais nas suas entranhas. Ali, desde a nascente ao desaguadouro, apenas um rio com seu percurso, sua história, seu viver ladeado ao ribeirinho. Apenas um rio, mas o mais belo dos rios.

Tudo, menos o rio, seja o São Francisco ou qualquer outro leito, jamais poderá ser culpabilizado pelos acontecimentos nas suas águas. Diversas embarcações já afundaram ali, canoas já sumiram como por encanto, pescadores e viajantes já conheceram de suas surpresas. Mas apenas um rio que corre o seu destino, que segue adiante mesmo que o homem já tenha tomado grande parte de suas seivas. Porém, não tudo. Suas forças, correntezas e abismos se escondem lá embaixo, movem seus impulsos sem que ninguém perceba. Acima, no espelho d’água, somente o leito escorrendo.

Contudo, não foi pela panela que borbulha ao fundo ou pelo redemoinho que corre de canto a outro, que o Velho Chico se tornou tão conhecido. Sua grandeza antecede a chegada do homem, já se estendia caudalosamente antes mesmo que o homem primitivo lançasse seu dardo em busca de peixe ou o índio nele deitasse a sua rústica canoa. Aquele mundão de água correndo entre serras e descampados, curveando penhascos, encharcando as margens e florescendo o viver, já se fazia de beleza inigualável antes mesmo que a filosofia definisse o belo.

E é tal beleza que ainda pulsa aos olhares e sentimentos. Não somente a beleza visual, mas principalmente a formosura histórica, geográfica, cultural, humana, sentimental. Não há ribeirinho que não se ajoelhe agradecido às suas beiradas, não há beiradeiro que não guarde uma devoção especial pelas suas águas. O São Francisco é algo espiritual, gestado e perpetuado na alma. Não há olhar mais envelhecido que não mareje ante suas antigas histórias, ante as recordações e saudades, ante as relembranças das vidas e dos cotidianos ao lado do seu leito.

Além de sua reconhecida grandiosidade e pujança histórica, sobre leito que foi caminho ao hostil e ao desconhecido, e por muito tempo se mostrou volumoso a cada porto, o São Francisco sempre possuiu o dom de encantar e devocionar todos aqueles que com ele convivem. E tamanha a devoção e o afeto que até hoje, mesmo nas suas magrezas e rasos ossudos e arenosos, é como se ele se derramasse inteiro num poema. Eis que o mais belo rio que passa pela aldeia ribeirinha, pela aldeia sertaneja, pela aldeia nordestina.


Com efeito, o sentimento ribeirinho possui analogia aos versos escritos por Fernando Pessoa, onde o rio de sua aldeia era o mais belo rio simplesmente pelo fato de ser o rio que passa na sua aldeia: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia... Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia. E para onde ele vai e donde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha aldeia...”.

Assim, o São Francisco sempre foi o mais belo rio daquela gente, sempre foi o rio da vida beiradeira, sempre foi a razão da existência de gerações. Pelas águas do Velho Chico brotou a existência sertaneja, pelos seus caminhos chegaram os primeiros habitantes, nos seus portos chegavam e partiam riquezas, nos seus costados o embarque e desembarque do alimento e de tudo aquilo que permitia viver ainda num sertão distante de tudo. E nas suas margens as aldeias, as pequenas povoações, os currais, as veredas sendo abertas para o mundo adiante.

Por onde passava, o Velho Chico ia gestando um mundo e um viver tão próprios que até hoje o homem não desapartou da dependência de suas águas.  Desde os tempos mais antigos, ali nos casebres, nas choupanas, nas casinholas de pescadores, por cima dos barcos e no emaranhado das redes, na ponta dos anzóis e nas areias ao redor, tudo filho das águas. Daí ser o São Francisco o pai, a mãe e o protetor, de tudo que se chama ribeira, margem, pescador, barqueiro, vivente daquelas distâncias molhadas e de tão sublime sobrevivência.

Sim, a razão com Fernando Pessoa. Mas também com todo ribeirinho e todo pescador, com todo vivente de suas beiradas. O rio do poeta é mais bonito que o Tejo porque é o rio que passa pela sua aldeia. Assim também a beleza maior do Velho Chico ao passar pelas aldeias nordestinas. Não é mais aquele rio imenso e caudaloso, não é mais caminho de grandes embarcações, mas ainda tão belo quanto aquele caudal de outros tempos. Eis que o amor está no que os olhos avistam e o coração sente. E por isso mesmo a eterna carranca despontando ao longe.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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