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domingo, 5 de março de 2017

A FERA NA SOLIDÃO

*Rangel Alves da Costa

Na solidão profunda, na solidão mais aterrorizante, o homem agoniza, transmuda-se, entorpece. Na solidão o homem estertoriza, lamente, chora, grita, sofre. Não é sequer humano, apenas o ser transbordante em outro ser horrendo e moribundo.

Na solidão entranhada nas profundezas, o homem geme, germina a infindável melancolia dos abandonados. Uma solidão tão absolutamente sozinha que no silêncio maior assobiam e açoitam as ventanias vorazes, as tempestades atrozes, os famintos vendavais. Um deserto de caminho de fogo.

Na solidão, naquela solidão sem chão nem altura, sem lado nem saída, o homem se desumaniza, desnorteia-se em redemoinhos gulosos de vida. Quer pular, quer gritar, quer subir pelas paredes, quer encontra uma fresta, quer uma lua, quer um sol, mas só encontra o negrume retinto da solidão. E de boca aberta e feia. Dentes pontudos e língua bifurcada, tudo assim na boca da solidão.

Um ser solitário e metamorfoseado na exata forma kafkiana. Um verme asqueroso, um se repelente e abominável, um bicho em imprestabilidade rastejante. Membros e troncos, mente e lucidez, que de nada servem senão para o reconhecimento da própria desvalia humana. Embaixo da cama, pelos cantos escuros, a miséria humana latejando a animalidade mais terrificante.

Ou seria um lobo uivante na altura do monte, de caninos afiados e olhos vermelhos pelo fogo da solidão? Lobo e sua tristeza, sua angústia, seu terrível e voraz sofrimento. Na sua solidão apenas o uivo, o brado, o grito dilacerado na noite, mas quem o avistasse certamente encontraria um espectro forçando a existência. Terríveis sons na escuridão da montanha, ecos que avançam adiante como se quisesse tudo transformar no mais cruel desalento.


Assim o homem na sua solidão. Uma fera, um bicho, um selvagem, um ser bestial, qualquer coisa ferina que avança e se consome a si mesma. Um ser animalizado, transformado em irreconhecível criatura. Uma bestialidade de garras afiadas e pulsações violentas na alma, na pele, nos olhos, na boca, nos sentimentos. Um ser solto da jaula e preso no seu próprio labirinto. Uma animalesca figura que sequer se reconhece na sua dor.

Uivos, brados, gemidos, berros, bramidos, clamores, soluços, lamentos, agonias, alaridos, clamores. Eis a voz da mais solitária solidão. Eis o que ecoa no meio da noturna selva dos desvalidos sentimentos, dos devastadores abandonos.

“Contorce-se. Desgrenha-se em gemidos roucos. Move suas garras afiadas no chão duro. Deitado, rola de lado a outro, um ser em transmudação. Grita ou berra, geme ou uiva, ou tudo ao mesmo tempo. Sacoleja, bate no chão, coloca as duas mãos sobre a cabeça, puxa vorazmente os cabelos, lanha o corpo inteiro, depois se move rapidamente em direção à parede. Quer subir, quer escalar a parede, quer alcançar o telhado. Escorrega suas mãos perto da janela. Salta e cai, e novamente se contorce na mais profunda agonia. Quer fugir, quer encontrar uma saída para a solidão. Mas o que lhe resta é somente a solidão...”.

“Vai subindo como pode até alcançar o telhado. Suas mãos em garras afastam telhas e fazem surgir um laivo de lua. O quarto escuro toma uma cor amarelada e de tez enferrujada. A pouca luz reflete o rosto crispado, o olhar de fera, a boca de fera, o corpo da fera em ritual de solidão. Mas não é fera, é homem. Mas não é mais o homem, é simplesmente a fera gestada na solidão...”.

“Avançou sobre móveis, derrubou o cálice em cima da mesinha, estilhaçou a garrafa de vinho. Quis beber veneno, mas não reconhecia o frasco. Sua pele estava rija demais para que o fio do punhal respingasse o vermelho da aflição. Não havia arma de fogo, mas naquele momento ele não era caçador, apenas frágil presa. Cansou-se de tudo, cansou-se do mundo, cansou-se da vida e de si mesmo. Quis morrer. Decidiu. Urrou pela última vez e adormeceu. Pela luz que descia do telhado afastado, apenas um vulto lançado ao chão. Dormia. Ainda pulsando lágrimas e agonias, apenas dormia. Uma fera na solidão adormecida”.

Eis o homem na sua solidão. Uma solidão tamanha que o torna fera. E já não será mais homem, mas apenas o bicho perdido na selva escura de si mesmo.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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