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quinta-feira, 19 de julho de 2018

A JANELA E OUTRAS SAUDADES

*Rangel Alves da Costa

Em Poço Redondo nunca houve uma janela mais famosa do que a de Dom. Não só a janela como o papagaio. Eita fi da peste fofoqueiro e falador! Com vendinha onde hoje se situa uma padaria defronte à Câmara, num comércio pequeno, porém sortido do açúcar ao café, mas principalmente da aguardente, Dona Mercedes Feitosa (irmã de Clotilde, Zé de Iaiá, Maria de Miguel, etc.), a famosa Dom, fez história em Poço Redondo.
Não só ela como sua janela e seu papagaio. Como a casa era comprida, da sala da frente onde funcionava a bodega, passando por um corredor, depois mais uma sala e enfim a cozinha, nem precisava Dom estar no seu balcão quando alguém entrava. O papagaio logo dizia “Tem gente, tem gente”. De repente também se ouvia: “Bebeu, bebeu”. E assim pra dizer que alguém havia tomado uma relepada. Não somente isso, pois fofoqueiro que só. Nada acontecia por ali, mesmo após a janela, que o louro não entregasse de pronto.
Muita mocinha até odiava o papagaio. E tudo por causa da famosa janela de Dom. A tal janela ficava bem do lado da sala que antecedia a cozinha. Baixa, com umbral largo, com pouca claridade após o anoitecer, havia se tornado o local ideal para namoros e outros chamegamentos. Não se tinha uma só noite que a janela não estivesse ocupada. Muito casal ficava desapontado quando olhava ao longe e ela já estava devidamente tomada.
Ora, ali, naquela janelinha, o homem podia sentar e a mulher sentar em cima, a mulher podia sentar e o homem nela se recostar como quisesse. Muita gente passava e não conseguia enxergar senão “o bolo”, “o atropelo”. Uma festa. E por isso mesmo tanta disputa por aquele verdadeiro batente. Mas o papagaio safado não deixava barato não. As mocinhas passavam e ele de repente gritava: “Eu vi!”. Envergonhadas, as namoradeiras corriam jurando de morte aquele safado que parecia não ter o que fazer e até pelas brechas espiava a vida dos outros.


Mas Dom também não gostava daquela sem-vergonhice toda na sua janela. Vivia reclamando que não suportava mais estar dentro de casa e ouvindo tanta safadeza. Repetia e repetia que não ia aceitar mais aquilo de jeito nenhum. Mas não tinha jeito. Era uma bondosa, uma generosa, uma amiga de todos, ainda que tivesse fama de valente e de punhal afiado na língua. Grande amiga de Alcino, na sua bodega havia um caderno só para anotar os cafés, os açúcares e as farinhas, dentre outras miudezas, que o então político mandava providenciar.
O papagaio de Dom conhecia tanto Alcino que nem se importava mais quando ele entrava corredor adentro e se metia pelos cantos a fazer política. Ali em Dom era praticamente uma sala de acertos, de conchavos, de segredos. Ali muita política foi acertada e muito dinheiro repassado. A própria Dom nunca reclamava. Pelo contrário, vivia esvaziando seu cofre e debaixo do colchão para emprestar a Alcino. De repente uma briga danada entre os dois. Alcino se espantava com os valores anotados e Dom prometia fechar-lhe as portas. No instante seguinte já tudo voltado às pazes.
“Você gosta, não é sua véia!”, dizia o papagaio. E Dom respondia: “Vá se lascar seu fi do cabrunco!”. E corria para fechar a janela, pois a noite já chegava e só via a hora de os casais pularem a janela. Não demorava muito e os atropelos começavam, os resmungados também. Fingindo-se de adormecido, o papagaio abriu um olho e atiçava os ouvidos. “Oi, já começou”, dizia.
Mas um dia, Dom não sentou mais na calçada do outro lado para fazer renda de bilro nem foi jogar carteado com as amigas da vizinhança. Também não houve balcão nem pinga servida. Entristecida, a janela se fechou para sempre. Depois a casa foi transformada em prédio grande e somente a memória não se esqueceu daquele endereço. Nem da voz do papagaio: “Desse jeito, coma logo!”.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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