Seguidores

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

APÓS A RETIRADA


*Rangel Alves da Costa

O coiteiro Totonho Catingueira ouviu de longe o labafero do terrível confronto entre os cangaceiros e os macacos. Seu casebre de cipó e barro ficava nos arredores do coito onde a cangaceirama estava arranchada até receber ordens de Lampião para imediata partida. Ante o mau presságio vindo no pio agourento do pássaro, a apressada retirada só não se misturou ao breu da noite naquele mesmo instante pelo açoite do tiro chispado pela volante.

A partir de então o calejado coiteiro ouviu tudo: zunido e açoite, rajada e disparo, berro e gritaria, o pandemônio do mundo em acabação. Ele sabia que tudo vinha do coito, que tudo estava acontecendo pelos lados do arranchamento cangaceiro. E pelo barulho dos tiros, também lhe veio a certeza de que uma guerra sangrenta estava sendo travada. E o inimigo era a volante.

Teve vontade de abrir a porta e correr até lá, como, aliás, já havia feito no dia anterior, quando levou três cortes de panos, agulhas e linhas, além de dois quartos de carne de bode e duas medidas de farinha. Pouca coisa pra tanta gente, mas já com encomenda certa para a manhã daquele dia que parece não ter clareado naquele coito. Não abriu a porta, mas também não conseguiu mais ficar sobre as varas da cama. Sua esposa Joaninha tremia igual vara verde. E ele, para acalmá-la, apenas dizia: Lampião sabe o que faz!

Quando a primeira luz do dia abriu sua boca, e já desde muito que não se ouvia nada vindo do campo de guerra, então o coiteiro decidiu ir até lá para saber o que realmente tinha acontecido. Mas não era besta de se aproximar demais nem chegar até lá pela vereda já repisada. Seguiu quase rastejando pelo meio da mataria até avistar a pedreira e o bonome que sinalizavam o local do arranchamento. Mas tudo parecendo estranho demais. Ora, para a barulheira ouvida há poucas horas, aquele silêncio todo parecia estranho demais.

Resolveu ir um pouco mais adiante. Estava espantado com o silêncio e a calmaria. A não ser pelo mato destronchado, pelos galhos quebrados, pelas marcas das balas, da correria e da refrega sangrenta, tudo o mais parecia uma paisagem de preguiçosa sonolência. Mas não pode ser, disse a si mesmo. E completou: Pra tanto tiro e tanta gritaria, tanto berreiro e tanto açoite, por aqui tinha que ter mais que marcas de sangue aqui e acolá. Tinha que ter muito corpo estirado e já sendo visitado pelos urubus.

Mesmo na desolação do lugar, o velho coiteiro não estava sem medo. Sabia que a mata tinha olhos e muito escondia nas suas entranhas. Pisava em pedra como num tapete. Assustava-se com o próprio barulho do roló sobre o chão. Um chão de guerra não era pra se brincar. Lançava o olhar sobre cada tufo de mato como se de repente pudesse se deparar com o inesperado. Era isso o que mais temia. Mas nada foi encontrando que tivesse arma em punho ou sangue nos olhos. O coito também estava totalmente vazio. Ou quase.

Ao pé de uma pedra, então avistou um papel como se fosse uma carta dobrada. Papel envelhecido, amarelado, já muito desgastado de tempo e de caminhada. Lançou a mão, trouxe o escrito aos olhos de pouca leitura, mas ainda assim conseguiu ir soletrando. Era uma reza escrita à mão, e dizia:

“À vossa proteção eu recorro Santa Mãe de Deus. Não despreze as minhas súplicas nas necessidades e livrai-me sempre dos perigos, ó Virgem gloriosa e bendita. Que esse seu filho despejado nos perigos do mundo e nas mãos traiçoeiras dos inimigos, nunca seja por eles perseguido, alcançado e a seus pés ajoelhado. Livrai Mãe de Deus, minha Nossa Senhora, de todo mal, de todo ataque, de toda bala, de toda faca e punhal, de todo veneno e de toda traição. E que o meu corpo, meu espírito e minha alma, sejam sempre protegidos pelo escudo maior de vossa força, Mãe Santíssima. Amém.”

Mas espantoso mesmo foi a surpresa do velho coiteiro ao avistar a assinatura abaixo da oração: “Capitão Virgulino Lampião”. A oração que Lampião não se desapartava, e agora? Disse quase gritando. E, demonstrando extremada preocupação, ainda disse: Lampião de corpo aberto não é Lampião, e agora? Pode ser tido como bicho, como carnicento, o que for, mas não há ninguém mais temente às coisas do céu que o Capitão, não há cristão sobre a terra que seja mais devotado a Nossa Senhora e a Padre Cícero do que ele. Eu mesmo já vi, na boca da noite, Lampião se afastando pra fazer suas orações. E sempre tinha essa reza como proteção maior. E agora?

A preocupação do coiteiro era plenamente justificada. Não se sabe como, mas a pressa da retirada fez com que o cangaceiro maior deixasse cair aquela sua preciosidade. Também não se sabe ao certo, mas depois disso o seu fim começou a se aproximar. O seu bando já estava longe dali, mas não mais na segurança e na proteção de antes. E Lampião logo ficou sabendo disso. Quando procurou sua oração e nada encontrou, além da lágrima lhe veio a certeza de tempos muito difíceis de serem vencidos.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com



http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário