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terça-feira, 1 de novembro de 2011

Biró de Onofre

 José Romero Araújo Cardoso

Ele nasceu em 15 de novembro de 1926 e faleceu no fatídico dia dois de agosto de 1976. Veio ao mundo na cidade de Pombal, Estado da Paraíba, e lá também desencarnou. Visitei seu túmulo em cinco de novembro de 2005, na companhia de alunos da graduação do curso de Geografia do Campus Central da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, quando de viagem de estudo de campo programada para a disciplina Geografia das Indústrias e dos Serviços.

Não pude lhe fazer visita de túmulo no dia de finados, razão pela qual solicitei ao corpo discente que coordenei em atividades de campo para acender velas comigo no jazigo onde ele repousa eternamente.

Nunca havia tocado com ênfase no assunto, é algo que me incomoda, pois se trata do meu pai, um homem a quem dedico muitas reflexões e orações. Foi ele quem começou a me ensinar os segredos do sertão, mostrando-me o que representava cada filete d’água do rio Piancó, os métodos para pescar e caçar e a serventia de cada espécie de nossa flora tão ameaçada pela ação do homem nos dias de hoje.


Recordo-me bastante de Biró de Onofre, não obstante ter apenas seis anos, perto de completar sete, quando ele fez sua última viagem rumo ao além. Ele era baixinho, moreno de cabelos lisos e fala mansa e pausada. Conversava sempre fitando as pessoas nos olhos, bem no fundo dos olhos. Creio que foi dele que herdei isso.

Papai, porém, tinha na imprudência, uma marca registrada. Ele não tinha medo de absolutamente nada, era corajoso ao extremo. Nada se constituía em mistério para ele, tudo era natural e passível de ser desvendado. Mas a imprudência de Biró de Onofre lhe foi fatal, ele desprezava toda e qualquer noção acerca de cuidados. Pena que ele achasse o contrário.

Chorei no seu túmulo quando da visita efetivada por não ter tido como ir ao dia de finados de 2005 em Pombal. Chorei muito, me lembrando de muitas coisas que passamos juntos, lembrei também as inúmeras surras que levei dele. Papai era um siri na lata quando se zangava, ninguém conseguia controlá-lo.

A tragédia de Biró de Onofre aconteceu numa segunda-feira. Era a primeira segunda de agosto, quando a tradição judaico-sertaneja prescreve a necessidade de não haver manuseio de instrumentos de metal.

Tudo começou quando a trifásica que corta o terreno de Chiquinha de Dozinho, irmã do meu avô, começou a tangenciar as galhas da cajazeira que ali existia. Descargas impressionantes foram lançadas ao chão, causando espanto e terror às nossas primas da rua de baixo.

Biró, intempestivo e sem nada temer, observou o pavor de todos e logo começou a arquitetar seu último plano. Tinha que cortar àquelas galhas imediatamente, antes que algo pior pudesse acontecer. Conhecedores do temperamento espalhafatoso e surrealista de Biró de Onofre, alguns parentes acionaram a companhia energética paraibana, tentando evitar o iminente, o inevitável. Ele estava disposto a se arriscar, num gesto de altruísmo, intuindo que vidas não fossem ceifadas.

Papai, o senhor deveria ter pensado mais, ter raciocinado sobre inúmeras hipóteses, principalmente no sofrimento do seu filho único que tanto te amou e ainda te ama. O senhor deveria ter pensado em sua esposa que varava plantões no Hospital Distrital, mas, para ele, era a aventura de mostrar que não tinha medo que mais importava.

Ele me deixou de manhã, bem cedinho, na casa da irmã, minha mãe Cora, minha e também de Natalzinho. Rumou para a rua de baixo irresoluto. Tinha que cumprir àquela “missão” e se imortalizar no imaginário sertanejo, que tanto louva os bravos e destemidos. Mas a prudência deveria norteá-lo, não poderia pensar apenas na “glória”. E que glória é essa? Será “glorioso” deixar um órfão e uma viúva desamparados? Será “glorioso” morrer como herói?

Na cajazeira, os galhos vibravam ao sabor dos ventos, cada centímetro quadrado da árvore escondia a asa negra da morte. Era uma aventura inusitada que ele abraçava.

Dona Porcina de Zé Vicente, com a experiência dos sertanejos, logo percebeu o objetivo de Biró de Onofre. Avisou-lhe que ali não era lugar para se aventurar, para mostrar valentia. Tentou de todas as formas demovê-lo daquela empreitada absurda. Afinal, a companhia energética estava a caminho. Mas, desprezando os avisos, o que era natural num homem que não tinha medo de nada, ele subiu na cajazeira e logo começou a podar os galhos traiçoeiros da frondosa espécie nativa do semi-árido.

Não demorou muito e Chiquinha de Dozinho também engrossou a corrente a fim de que ele parasse com àquela sandice. Cortar uma árvore cujos galhos estavam em contato com uma trifásica era o mesmo que estar buscando a morte.

Mas ele nem ligou, continuou seu trabalho fatal. Era a última etapa de sua vida, não mais teria as chances que Deus havia lhe concedido. Antes disso, ele foi vítima com o primo Zé Cardoso de uma descarga elétrica estupenda, quando trabalhavam estendendo a fiação telefônica pela zona rural de Pombal. Os fios haviam se conectado com a mesma trifásica que o levou à eternidade.

Às 10 e 30 da manhã do dia dois de agosto de 1976, Biró de Onofre se despedia da vida, vítima daquilo que tanto lhe aconselharam a não fazer. A última galha era a mais perigosa, mas ele nem queria saber disso. Tentou cortá-la, e conseguiu o intento, mas como era bastante pesada, logo ela envergou em direção à alta-tensão, fulminando-o instantaneamente.

Biró, Severino Cruz Cardoso, este era seu nome completo, o senhor devia ter tido um pouco de paciência, pois depois de sua desencarnação os funcionários da companhia energética, comandados por um primo legítimo de sua esposa, chegavam ao local para fazer o trabalho que não era de sua competência.

Rogo a Deus Todo Poderoso, o Deus de nosso povo, o Grande Arquiteto do Universo, simbolizado na estrela disfarçada em Rosa no frontispício da casa dos seus tios Aarão Ignácio Cardoso D’Arão e Facunda Alencar, que lhe conduza ao reino dos justos e dos honrados, pois és a essência das reminiscências e das saudades de alguém que ficou neste plano terreno a chorar sua perda, a remoer a saudade de sua presença.     

Que Deus te proteja e te dê os Céus como recompensa pelo gesto de extremo altruísmo que protagonizastes.

José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo. Professor-adjunto da UERN.

Enviado para este blog pelo professor Romero Cardoso

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