Pe. Antônio
Vieira
(...) O que eu
posso acrescentar pela experiência que tenho é que não só do Cabo da Boa Esperança para lá, mas
também da parte de aquém, se usa igualmente a mesma conjugação.
Conjugam por
todos os modos o verbo rapio, não falando em outros novos e esquisitos, que não
conhecem Donato nem Despautério (a).
Tanto que lá
chegam começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que
pedem aos práticos, é que lhes apontem e mostrem os caminhos por onde podem
abarcar tudo.
Furtam pelo
modo imperativo, porque, como têm o misto e mero império, todo ele aplicam
despoticamente às execuções da rapina.
Furtam pelo
modo mandativo, porque aceitam quanto lhes mandam; e para que mandem todos, os
que não mandam não são aceitos.
Furtam pelo
modo optativo, porque desejam quanto lhes parece bem; e gabando as coisas
desejadas aos donos delas por cortesia, sem vontade as fazem suas.
Furtam pelo
modo conjuntivo, porque ajuntam o seu pouco cabedal com o daqueles que manejam
muito; e basta só que ajuntem a sua graça, para serem, quando menos, meeiros na
ganância.
Furtam pelo
modo permissivo, porque permitem que outros furtem, e estes compram as
permissões.
Furtam pelo
modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do governo, e sempre lá
deixam raízes, em que se vão continuando os furtos.
Estes mesmos
modos conjugam por todas as pessoas; porque a primeira pessoa do verbo é a sua,
as segundas os seus criados e as terceiras quantas para isso têm indústria e
consciência.
Furtam
juntamente por todos os tempos, porque o presente (que é o seu tempo) colhem
quanto dá de si o triênio; e para incluírem no presente o pretérito e o futuro,
de pretérito desenterram crimes, de que vendem perdões e dívidas esquecidas, de
que as pagam inteiramente; e do futuro empenham as rendas, e antecipam os
contratos, com que tudo o caído e não caído lhes vem a cair nas mãos.
Finalmente nos
mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, plusquam perfeitos, e
quaisquer outros, porque furtam, furtavam, furtaram, furtariam e haveriam de
furtar mais, se mais houvesse.
Em suma, o
resumo de toda esta rapante conjugação vem a ser o supino do mesmo verbo: a
furtar, para furtar.
E quando eles
têm conjugado assim toda a voz ativa, e as miseráveis províncias suportado toda
a passiva, eles, como se tiveram feito grandes serviços, tornam carregados e
ricos: e elas ficam roubadas e consumidas...
Assim se tiram
da Índia quinhentos mil cruzados, da Angola, duzentos, do Brasil, trezentos, e
até do pobre Maranhão, mais do que vale todo ele.
Padre Antonio
Vieira, sacerdote jesuíta, professor de retórica, pregador, confessor,
embaixador e escritor português. Trecho do Sermão do Bom Ladrão, escrito em
1655. Proferido na Igreja da Misericórdia de Lisboa (Conceição Velha), perante
D. João IV e sua corte. O retrato que apresenta o autor é de Cândido Portinari.
Postado por: Honório de Medeiros
http://honoriodemedeiros.blogspot.com.br
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