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terça-feira, 9 de julho de 2013

CANGAÇO - II (Artigo)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

 CANGAÇO - II (Artigo)

Na verdade, existem muitas obras que realmente procuram adentrar no cerne do fenômeno para compreendê-lo e explicá-lo. Mas há um porém nisso tudo. Por que, até o presente, não há um entendimento mais generalizado e mais coerente sobre o cangaço? Ora, não se trata de uma história que possa ser contada segundo o desejo ou a tendência do pesquisador. No cangaço, ou foi ou não foi, e está acabado. O problema todo reside no fato da desconstrução do conhecido para forjar o surgimento do duvidoso.

Mas devemos reconhecer que não é tarefa fácil empreender um estudo mais aprofundado sobre o cangaço. O próprio conceito, até hoje, ainda não foi delimitado, ainda não se chegou a um consenso sobre o que realmente foi, o que objetivou e qual o seu significado. Para se ter uma ideia, basta folhear alguns livros ou enciclopédias para encontrar conceitos ora afirmando ter sido o cangaço um movimento social, ora um tipo de reles banditismo, ou ainda um virulento grupo de homens armados, dentre outras acepções.

Um destes conceitos diz que o cangaço foi um fenômeno social ocorrido no Nordeste brasileiro, de fins do século XIX até 1940, motivado pelas condições político-sociais peculiares da região, tais como a estrutura feudal da propriedade agrária e o atraso econômico. Caracterizou-se pelo aparecimento de grupos de bandoleiros errantes, que percorriam o sertão saqueando fazendas e cidades e lutando contra bandos rivais e polícia. Assim está no verbete da Enciclopédia Universal Gamma.


Outra conceituação recorrente diz que o cangaço é fruto do cenário de seca, fome, concentração de terras e mandonismo instalados no Nordeste brasileiro. E cita que as lutas entre famílias poderosas motivo o uso de armas, fato que ficou conhecido como cangaço temporário. No passo seguinte, a violência deixa de ser gerada por guerras particulares para se transformar no que se tem por cangaço permanente. Contudo, não vejo com correção que se pretenda dividir o cangaço em temporário e permanente, ou mesmo noutras divisões. E também errôneo, vez que as rixas entre famílias poderosas não devem ser vistas como gestação cangaceira. A não ser pelo uso do jagunço sertanejo para resolver os problemas de sangue.

Já outra conceituação, esta voltada para a origem do termo cangaço, afirmando que este é o conjunto de armas que costumam conduzir os bandoleiros nordestinos. Sinônimo de banditismo, de celeramento, de atrocidade, o nome cangaço vem de canga, porque o bandoleiro antigo se enchia de armas, trazendo o bacamarte passado sobre os ombros como uma canga; e, assim, se dizia que andava debaixo do cangaço.

Há ainda definições colocando o cangaço como sendo um movimento social ocorrido no sertão nordestino durante o fim do século XIX e início do século XX; como um fenômeno nordestino integrado por nômades que usavam violência para cometer crimes na região; como um bando de homens armados conhecidos como cangaceiros; como um fenômeno social, caracterizado por atitudes violentas por parte dos cangaceiros, que andavam armados e espalhando o medo pelos sertões.

E, ainda, a concepção do cangaço como um tipo de luta armada ocorrida no sertão nordestino até os anos 40 do século passado, contando com grupos de homens armados que vagueavam pela região em busca de meios de sobrevivência e enfrentando poderosos com o uso de armas e desmedida ferocidade.  Por fim, como um tipo específico de banditismo que se desenvolveu no sertão nordestino, levado a efeito por cangaceiros - bandos de malfeitores, ladrões, assassinos, bem armados, conhecedores da região -, que assolavam e destruíam, impunemente, tudo por onde passavam.

Concepções desse tipo, aproximadas ou muito distantes da realidade, somente surgem pela falta de uma conceituação geral e consensualizada proporcionada pelos próprios pesquisadores e estudiosos. Mas não, o que se verifica são abordagens tão diferenciadas que acabam permitindo interpretações as mais contraditórias possíveis. E muitas, infelizmente, tratando o cangaço sob a ótica do puro banditismo ou da sangrenta marginalidade. Ora, há muito mais nessa teia que a aranha sedenta de sangue. Não se pode esquecer o casulo das injustiças alimentando a prática.

Creio que a conceituação do cangaço, pois, deve alcançar, em primeiro lugar, a sua visualização como um caso peculiar de força maior. Um inevitável acontecimento. Ou eclodia ou eclodia. Não foi movimento porque não nasceu organizado; não surgiu como fenômeno porque já estava enraizado. E também não foi uma reles expressão do banditismo, a não ser que se tenha como bandido comum o sertanejo que se embrenha nas caatingas para lutar, ainda que não saiba realmente contra quem ou o que.  É, pois, na sua raiz que o cangaço deve ter o seu conceito iniciado. Ora, não se encontra outra motivação para o seu surgimento senão como um inevitável acontecimento, e fruto de uma força maior.

A força maior que serviu como estopim já estava semeada no sertão nordestino. E com grãos diferenciados. Foi a junção desses grãos, então denominados perseguições, injustiças sociais, rixas particulares e indignações contra o sistema estabelecido, que acendeu a chama do pavio. E na mão de um condutor, um homem vitimado por tais mazelas, a chama logo se transformou em fogueira. E isto desde o seu início nos tempos de antanho, pois quando Lampião entrou na luta, lá pelos inícios da década de 20 do século passado, a estrada já havia sido percorrida por outros bandos. No caso do Capitão, à persistência daquelas mazelas se somaram rixas familiares e acusações crimonosas. Outro estopim, e o mais violento de todos.

Desse modo, tem-se até aqui o estopim ou a força maior diante da insuportabilidade frente às mazelas de então como fato gerador e suas motivações. E se daí em diante a vida dos rebeldes passou a ser no meio do mato, de vez em quando fazendo investidas nas povoações e propriedades, sendo perseguidos pela polícia, revidando e fugindo de novos ataques, tem-se então o terceiro ponto da conceituação: a vida errante em meio a perseguições e ataques.

Nesse entremeio, contudo, muitos outros fatores poderiam ser observados, tais como as características da liderança cangaceira, os pactos firmados entre os ditos bandoleiros das caatingas e poderosos, a arregimentação de novos elementos ao bando, as estratégias e planos, as influências na vida sertaneja, as ações cangaceiras em si. Mas não serviriam num conceito sintético, e sim num estudo mais aprofundado.
Tais entremeios devem dar lugar, pois, ao modo como se manifestou durante sua existência. E as consequências enfrentadas pelos rebeldes das caatingas todo mundo conhece. O que aconteceu em 38 na Gruta do Angico é o exemplo mais célebre do fim do ciclo cangaceiro. Os primeiros grupos cangaceiros, ou rebeldes primitivos, no dizer de Hobsbawn, também não suportaram a continuidade da luta e tiveram o seu inexorável fim.


O terceiro e último aspecto que não pode faltar numa conceituação diz respeito ao seu significado. O que a armada rebeldia sertaneja representou historicamente? Qual a contextualização do cangaço dentro da vida social e política brasileira? O cangaço refletiu, ao menos em parte, as veladas contestações sociais de então? A existência do cangaço foi importante ou não, e a que serviu? Por que a realidade cangaceira é tantas vezes transformada em substrato mítico?

Logicamente que tais respostas não caberiam numa síntese conceitual. Mas podem ser sintetizadas para possibilitar uma visão geral do seu significado. Então, sinteticamente, qual o significado do cangaço? Eis a questão. Com uma resposta, porém. E tal resposta no sentido de afirmar que o significado maior do cangaço foi ter se contraposto ao sistema vigente com o auxílio do próprio sistema, e este representado pelas autoridades e poderosos.

Continua...

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

(*) Meu nome é Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.

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